Folha de S.Paulo

Bar Soberano, que foi point do cinema da Boca do Lixo, reabre como museu

Endereço paulistano reunia profission­ais do ramo e terá mostras sobre período áureo da região

- Henrique Artuni são Paulo R. do Triunfo, 155, Santa Ifigênia. Qua. a sáb., das 10h às 16h. Grátis

“A Boca não é mais a mesma”, diz um homem, espiando o interior do bar Soberano, na rua do Triunfo, no centro de São Paulo. A cena não é de hoje. Já em 1987, o cineasta Ozualdo Candeias mostrava, em “As Bellas da Billings”, a si mesmo e outros parceiros de geração como fantasmas pelas mesas de um restaurant­e tão decadente quanto o metiê do cinema na região.

Já se vão décadas, mas Clery Cunha põe a mão no peito ao reconhecer o point da sua gente, no número 155. “Para resolver qualquer produção de filme, era só aparecer aqui”, afirma o diretor de um dos primeiros filmes espíritas do país, “Joelma 23º Andar”, em que uma jovem Beth Goulart vivia uma vítima do incêndio no edifício Joelma.

Ressuscita­do por iniciativa do casal Marcelo Colaiácovo e Renata Forato, ambos de 41 anos, o novo Soberano abriu há uma semana trocando os pê-efes e o álcool barato para se tornar um museu do cinema da Boca do Lixo, como ficou conhecida a região.

“Não acho romântico. Quem dava esse nome era o pessoal da Warner, da Paramount, para nos depreciar”, diz, revoltado, Virgílio Roveda, o Gaúcho, apontando para a rua onde fez sua carreira como diretor de fotografia de Mazzaropi, Rogério Sganzerla, além de ter sido braço direito de Candeias, cronista daquela rua onde se concentrav­am produtoras, distribuid­oras e casas para aluguel de equipament­os.

Aos 78, Roveda tenta despistar, mas é um dos mais apaixonado­s remanescen­tes da região que produziu centenas de obras, incluindo terror e comédia, passando pelas célebres pornochanc­hadas e os filmes de sexo explícito. Com a memória prodigiosa, ele identifica todos que aparecem nas fotos de “Uma Rua Chamada Triumpho”, livro recheado de registros dos anos 1960 e 1970, onde não raro o Soberano era protagonis­ta.

“Um tinha uma câmera parada, outro um resto de negativo ou um crédito no laboratóri­o. E o filme nascia dessa cooperativ­a informal”, diz Roveda. Agora, ele devolve parte das memórias, doando a câmera Cine 60, com chassi e tripé, que guardava em casa e que hoje decora o espaço ao lado de projetores e uma antiga cafeteira Monarcha.

No lugar do balcão de sete metros, onde os frequentad­ores apoiavam suas cervejas —e rabos de galo, um atrás do outro, como lembra Cunha—, o novo espaço traz um de vidro, pintado qual uma carroceria de caminhão, expondo livros sobre o cinema da época que formarão uma biblioteca.

“Aprendi a comer sardinha frita com o Anselmo Duarte nesse balcão”, diz a montadora Dalete Cunha, vulgo Baixinha, lembrando o dono da única Palma de Ouro do Brasil, ganhada em 1962 por “O Pagador de Promessas”.

Pelas paredes, cartazes: “Amor, Palavra Prostituta”, “A Super Fêmea”, “Histórias que Nossas Babás Não Contavam” e “O Jeca Macumbeiro” são alguns dos títulos pelas paredes de tijolos brancos, parte do acervo com mais de 600 itens originais.

O salão destaca ainda exposições, começando por “Além, Muito Além do Zé do Caixão”, com colagens, fotos e uma série de materiais inéditos do mestre do terror José Mojica Marins. A entrada é gratuita.

Colaiácovo e Forato cavam a história a picaretada­s. Com as próprias economias, bancaram a reforma do local que, há poucos anos, era mais uma das lojas de eletrônico­s que dominaram a Santa Ifigênia.

Num canto do salão, acharam o padrão xadrez, branco e vermelho, do restaurant­e original fundado em 1961 e tocado pelo português Serafim Teixeira até fechar, em 1994. Ao fundo, em um dos arcos que separam o agora espaço expositivo da cozinha, também restam fragmentos de um remoto azulejo floral.

Nos dois pisos superiores, onde havia uma pensão, a ideia é continuar a reforma e ter salas para exibir filmes e realizar oficinas. Para manter o local, os sócios pretendem abrir uma loja e abrir um canal para doações.

O desafio é grande —o prédio desvaloriz­ou por estar a duas quadras de um dos principais endereços da cracolândi­a, na rua dos Protestant­es.

“A gente precisa correr riscos para que o público se sinta à vontade e venha para cá. Pagamos segurança 24 horas e sinto que hoje a rua do Triunfo é uma das mais policiadas da cidade de São Paulo. A gente se sente seguro”, diz Colaiácovo. O local funcionará a princípio das 10h às 16h, de quarta a sábado.

É uma condição que afeta a região há décadas, mas o relato dos antigos frequentad­ores é de que havia boa convivênci­a entre a turma de cinema e prostituta­s, proxenetas, traficante­s e malandros que batiam ponto por ali.

Dalete Cunha, uma das primeiras mulheres a ter o registro profission­al de montadora, recorda a intimidade com as prostituta­s do pedaço. “Quando eu via alguma viatura, saía avisando uma por uma. Sumiam todas. A gente sabia que se fossem para a delegacia seriam exploradas e abusadas.”

Como se pode imaginar, a pancadaria também estourava. José Rima, o Espanhol, que armava as telas e cadeiras dos cinemas, era um exímio valentão daquelas bocas.

Com um escritório colado ao Soberano, no número 153, seus pares lembram das balbúrdias —enfrentou o próprio dono do bar, dizem—, dos acidentes que quase lhe custaram a vida montando os equipament­os e causos envolvendo assombraçõ­es.

Hoje, aos 96, ele diz não se lembrar de muita coisa. Entre piscadelas, só fala sobre o que tem certeza. “A juventude se foi. O tempo de antes era melhor. Montei tela e mais tela, isso eu posso dizer.”

Bar Soberano

 ?? Rubens Cavallari/folhapress ?? Interior do antigo bar Soberano, que era ponto de encontro dos cineastas da Boca do Lixo e hoje foi transforma­do em museu
Rubens Cavallari/folhapress Interior do antigo bar Soberano, que era ponto de encontro dos cineastas da Boca do Lixo e hoje foi transforma­do em museu
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Ozualdo Candeias/reprodução Foto sem data do início dos anos 1970 retrata o interior do bar Soberano

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