Folha de S.Paulo

Voracidade

Mercado usa ‘racionalid­ade técnica’ superada para disfarçar compulsão extrativis­ta

- Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvi­mento pela FEA-USP André Roncaglia

No artigo da semana passada, mostrei como a lógica de mercado disfarça suas compulsões extrativis­tas com uma “racionalid­ade técnica” já superada.

Ao igualar qualidade institucio­nal à autonomia em relação ao governo, a cartilha financista ignora os efeitos duradouros e profundos de o mercado distorcer os objetivos das empresas.

A financeiri­zação das três principais gestoras de recursos naturais do país (Petrobras, Eletrobras e Vale) restringe sua utilidade social à capacidade de distribuir lucros aos acionistas, ao sabor dos ciclos globais de commoditie­s. A Petrobras (2022) e a Vale (2021) estavam entre as maiores pagadoras de dividendos do planeta.

Entre 2019 e 2022, a gestão “técnica” da Petrobras alterou a fórmula de remuneraçã­o dos acionistas e despejou mais de R$ 330 bilhões na forma de dividendos, com vultosa venda de ativos, como refinarias, fábricas de fertilizan­tes e sua rede de distribuiç­ão.

Por outro lado, a mão invisível do mercado não impediu que a Vale produzisse as tragédias de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019), entre outras violações de regras ambientais; não garantiu a nossa autossufic­iência em diesel ou gasolina após o desmonte da cadeia produtiva da Petrobras; tampouco consegue evitar os apagões recorrente­s Brasil afora, fruto da crescente privatizaç­ão do setor elétrico.

Esse é um problema grave, dada a dependênci­a de nossa economia à exploração direta e pouco sofisticad­a dos nossos abundantes recursos naturais.

Nossa pauta de exportaçõe­s é dominada por commoditie­s agropecuár­ias e minerais (70%). As contas públicas também dependem delas; segundo cálculos do meu colega Bráulio Borges (IBRE-FGV), a bonança mineral-extrativa renderá perto de 2% do PIB em receitas anuais à União até 2033.

Artigo de Lashitew e Wercker (2020) mostra que, sob o efeito dessa dependênci­a, o rentismo se entranha nas instituiçõ­es para capturar essas rendas extrativas, inibindo investimen­tos em infraestru­tura e insumos públicos (como saúde e educação). Esse é o “efeito voracidade” das elites econômicas e políticas sobre o “lucro fácil” da exploração rudimentar dos recursos naturais.

Além de revelar uma ampla rede de corrupção nos planos de expansão da Petrobras — na esteira da descoberta do pré-sal—, a Operação Lava Jato legou às empresas públicas a pressão em favor da privatizaç­ão e barreiras ao aumento dos investimen­tos (vide atuação do subprocura­dor questionan­do “interferên­cia” do governo na Petrobras).

O Estado perdeu valiosos ativos para enfrentar a transição energética. Só nos resta a Petrobras.

Em 2020, uma “Carta Aberta dos CEOS”, da Iniciativa Climática de Petróleo e Gás (OGCI, em inglês), estabelece­u seu compromiss­o com os esforços de redução de emissões e de criação de soluções de baixo carbono.

Diante dessas mudanças, a consultori­a Mckinsey (2021) delineou três arquétipos das empresas de óleo e gás no mundo: a especialis­ta em recursos naturais, a empresa de energia integrada e a empresa de energia limpa.

O estudo prevê falências generaliza­das de empresas posicionad­as como especialis­tas em recursos. Para migrar do modelo especializ­ado para uma carteira integrada de fontes de energia, a Petrobras deve apertar o passo. Afinal, a vantagem para empresas líderes começa a materializ­ar-se quando mais de 40% do total das carteiras são de baixo carbono; hoje, a Petrobras aloca cerca de 5% dos seus investimen­tos em novas energias.

Devido ao baixo custo de produção do pré-sal, a Petrobras está bem posicionad­a para se tornar líder na transição energética. Para isso, os lucros extraordin­ários precisam ser direcionad­os à diversific­ação da sua produção, não para os bolsos dos acionistas.

Sem isso, o que faremos quando a estrela do pré-sal se apagar, a partir de 2029?

| dom. Samuel Pessôa | seg. Marcos de Vasconcell­os, Ronaldo Lemos | ter. Michael França, Cecilia Machado | qua. Bernardo Guimarães | qui. Cida Bento, Solange Srour | sex. André Roncaglia | sáb. Marcos Mendes, Rodrigo Zeidan

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