Folha de S.Paulo

O Chaplin de chuteiras

Garrincha era mais do que isso; está entre os cinco maiores da história do futebol mundial

- Tostão Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina

Nas minhas caminhadas diárias, para fortalecer o corpo e a alma, um leitor, idoso como eu, perguntou-me por que os jornalista­s esportivos não colocam Garrincha na lista dos melhores de todos os tempos. Em minha opinião, está entre os cinco maiores da história do futebol mundial.

Uma das razões é que são raros os que viram Garrincha jogar ao vivo. Não citam Garrincha porque são jovens e pensam que a vida e o futebol começaram com a geração da Copa de 1982 ou com a internet. Pelé é exceção, pois simboliza a perfeição. Os melhores do mundo em todas as áreas são os Pelés de suas profissões. Passou a ser substantiv­o.

A imagem que as tevês mostram de Garrincha são quase sempre a mesma, ele driblando para a frente e para trás, como um bailarino. Ele foi muito mais que um driblador, um artista, um Charles Chaplin de chuteiras, um anjo de pernas tortas, como era chamado por Nelson Rodrigues.

Possuía uma excepciona­l arrancada. Driblava quase sempre para a direita e deixava o marcador para trás. Em uma fração de segundo, colocava a bola para o companheir­o livre fazer o gol. Quando não tinha alguém bem posicionad­o, voltava e recomeçava a jogada. Nunca cruzava para ficar livre da bola ou para contar com a sorte de ela chegar a um colega. Na Copa de 1962, Garrincha ampliou o repertório e fez jogadas e gols belíssimos e inimagináv­eis. Foi eleito o craque do Mundial.

Para jogar a Copa de 1966, Garrincha, com graves e crônicos problemas no joelho, fez um grande esforço para estar bem. Não tinha mais condições de brilhar. Marcou um gol de falta contra a Bulgária, e o Brasil foi eliminado na primeira fase após ter perdido para Hungria e Portugal.

Diz a história que Garrincha em 1966 já era alcoólatra e que ia todas as noites ao bar do hotel onde estávamos hospedados em Liverpool. Não acredito, porque depois dos treinos estava sempre na sala de recuperaçã­o física. Além disso, antes de dormir, eu sempre passava no bar para escutar um pouco a música em um piano ao vivo e nunca o vi por lá, a não ser que aparecesse mais tarde.

Depois do Mundial de 1966 e de uma passagem ruim pelo Corinthian­s, sem condições de jogar profission­almente, Garrincha passou a dar exibição em pequenas cidades, até terminarem os convites. Não conseguiu driblar o tempo.

No Carnaval de 1980, ao mesmo tempo em que foi homenagead­o pela Estação Primeira de Mangueira, o homem Manoel Francisco dos Santos, bastante doente, simbolizav­a a glória e a decadência. Fiquei alegre ao vê-lo saudado por todos e ao mesmo tempo triste. Garrincha faleceu com 49 anos em janeiro de 1983. Diante da finitude da vida, somos todos perdedores.

Em 1971, fui convidado a jogar por uma seleção do mundo em Milão, na despedida do grande goleiro Yashin, da Rússia. Hospedei-me no mesmo hotel em que moravam Garrincha, Elza Soares e filhos. Ela dava shows, e Garrincha era garoto-propaganda do IBC (Instituto Brasileiro do Café).

Saímos um dia para jantar. Garrincha estava triste, com saudade do Brasil, do Rio de Janeiro e das peladas. Não sei se referia às peladas da infância em Pau Grande onde nasceu e cresceu ou às peladas no Maracanã, pois para ele todas as partidas eram deliciosas brincadeir­as.

Certamente, Garrincha tinha saudade da infância, dos passarinho­s e da liberdade. Era um homem simples, alegre, porém inadaptado ao sucesso. Talvez, se não tivesse saído de sua cidade, teria sido mais feliz. Ele não escolheu seu destino. Foi levado pela vida.

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