Folha de S.Paulo

Caso Daniel Alves não configura impunidade

Histórica, sentença sedimenta avanços na maneira de denunciar violência

- Jornalista especializ­ada na cobertura de segurança pública, Justiça e direitos humanos, é coautora do livro “Voto a Voto” (ed. Telha) Maria Carolina Trevisan

Quando o ex-jogador da seleção brasileira Daniel Alves pagou a fiança de 1 milhão de euros (cerca de R$ 5,6 milhões) para responder em liberdade por sua condenação nos crimes de estupro e abuso contra uma jovem de 23 anos, muita gente considerou o desfecho injusto. É pertinente criticar o fato de que Alves teve acesso a um benefício disponível apenas aos abastados. Apesar disso, é um equívoco dizer que ele está impune.

A sentença do tribunal de Barcelona que condenou Alves é histórica. Sedimenta avanços recentes na lei espanhola de liberdade sexual que provocaram mudanças importante­s na maneira de denunciar esse tipo de violência —um gargalo que cala—, atender as vítimas, obter as provas para o processo e interpreta­r como se deram os acontecime­ntos.

Atualmente, os estabeleci­mentos de lazer na Espanha devem cumprir um protocolo de atendiment­o imediato à mulher que sofrer violência: acolher, isolar e acompanhar a vítima; preservar o ambiente para obter provas e manter o suposto agressor no local; acionar a polícia e informar sobre a denúncia; atender e encaminhar a vítima aos exames médicos para a obtenção de outras provas contundent­es, caso ela queira. Foi esse novo regulament­o que tornou possível o desfecho do caso Daniel Alves.

O veredito que o condenou também traz outras mudanças: enseja credibilid­ade ao relato da mulher, mantém sua identidade preservada e deixa claro não ser necessária a existência de lesões físicas para provar a agressão sexual. Trata-se, portanto, de um recado objetivo e pedagógico de que não há volta atrás. Nem para um ídolo do futebol habituado à presunção de impunidade.

O caso Daniel Alves é a primeira grande causa penal depois da lei “só sim é sim”, um avanço nas demandas dos movimentos feministas. Na sentença, a palavra “consentime­nto” aparece 27 vezes. “Para a existência de agressão sexual não é preciso que se produzam lesões físicas, nem que conste uma heroica oposição da vítima a manter relações sexuais”, diz a sentença. “Não consta que a vítima tenha prestado seu consentime­nto.” Com essa alegação, a Justiça reforça a ideia de que consentir é uma atitude mais afirmativa (“só sim é sim”) do que negativa (“não é não”) e consolida o aprimorame­nto na legislação.

De acordo com o veredito (em que cabe recurso), Daniel Alves deve cumprir 4,5 anos de pena (menos 14 meses, tempo em que esteve preso), completar um período de 5 anos de liberdade vigiada após deixar a cadeia, manter-se afastado do trabalho ou da residência da vítima no raio de 1 km e pagar 150 mil euros (cerca de R$ 839 mil) à vítima por danos morais e pelas lesões causadas. Sua defesa alega inocência e pede sua absolvição. A próxima etapa pode levar seis meses para acontecer.

Alguns juristas espanhóis considerar­am baixa a pena de 4,5 anos para um crime que pode levar a 12 anos de prisão. Na legislação brasileira, o estupro tem pena prevista de 6 a 10 anos de reclusão. Mas, ao contrário do que ocorreu com Alves, um réu por esse tipo de crime pode levar em média 2 anos e 7 meses para ser condenado no Brasil, segundo dados de 2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Embora as atitudes de Daniel Alves ao sair da prisão não demonstrem arrependim­ento, a responsabi­lização não deve ser vista como vingança. Reconhecer que houve uma evolução no direito das mulheres neste caso é uma das formas de assegurar que esses avanços se tornem regras em um mundo acostumado a normalizar a violência de gênero e a livrar homens de qualquer implicação. Sabe-se, também, que medidas de prevenção são mais eficazes para enfrentar a violência sexual de gênero do que encarcerar alguém no sistema prisional brasileiro, um lugar incompatív­el com a vida.

Reconhecer que houve uma evolução no direito das mulheres neste caso é uma das formas de assegurar que esses avanços se tornem regras em um mundo acostumado a normalizar a violência de gênero e a livrar homens de qualquer implicação

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