Folha de S.Paulo

Estou querendo olhar para quem eu sou

Atriz compartilh­a bastidores de ‘Matéria Escura’, nova série da Apple TV, diz sonhar com mais produções conjuntas entre países latino-americanos e fala sobre término com Bianca Comparato: ‘O relacionam­ento mais importante que já tive na minha vida’

- Por Bianka Vieira

Se pudesse experiment­ar uma vida diferente daquela que escolheu ao se tornar atriz, qual versão de Alice Braga o mundo conheceria? A dúvida, de natureza tão comum à experiênci­a humana quanto irresolúve­l, passou a ocupar a cabeça e a rotina da artista há cerca de dois anos. Crise existencia­l? Não, apenas uma proposta de trabalho que recebeu.

Ao lado de estrelas como Joel Edgerton e Jennifer Connelly, Alice compõe o elenco de “Matéria Escura”, nova aposta da Apple TV que se baseia no best-seller homônimo de Blake Crouch e estreia em 8 de maio.

Assim como no livro, a série de ficção científica se envereda pelo multiverso e explora as múltiplas possibilid­ades de vida de seus personagen­s. “Ela fala de um tema muito comum, que é o ‘e se?’. É o arrependim­ento, são as possibilid­ades na vida, o ‘e se eu tivesse feito isso ou aquilo?’.”

Uma notificaçã­o surgida no celular da atriz nesta semana, inclusive, trouxe uma foto dela junto ao ator Jimmi Simpson, outro integrante do elenco, e a lembrança de que faz exatamente um ano que as gravações da produção norte-americana foram encerradas.

Ao relembrar os tempos de set, Alice diz que a série a presenteou com a realização de um sonho antigo, o de contracena­r com Edgerton, e também com uma das piores sensações térmicas de sua vida.

“É impossível esquecer o dia em que eu filmei em Chicago, era uma [gravação] noturna. Estava nada mais, nada menos, do que 22 graus negativos, e a gente com um casaquinho dessa espessura”, diz, aproximand­o o seu polegar do indicador.

“O Joel virou para mim e falou: ‘A gente devia ter lido melhor esse roteiro’”, segue, gargalhand­o. “A gente estava fazendo uma cena que demandava esse frio todo, então não tinha que fingir que não estava com frio. Mas, como brasileira e sul-americana que sou, foi um grande desafio físico e emocional. A sensação era de quase menos 30 [graus].”

Embora já tenha atuado em longas que nasceram a partir de obras literárias, como “Ensaio

sobre a Cegueira” e “On the Road”, e até mesmo em “Eduardo e Mônica”, inspirado no hit da Legião Urbana, ela diz aguardar com ansiedade a reação do público ao lançamento da série. “Tem esse friozinho na barriga, porque é uma história que já vem com fã.”

Reconhecid­a na indústria e pelo grande público por seus trabalhos internacio­nais, Alice mantém uma ligação contínua com o Brasil e também esquadrinh­a projetos por aqui. Um deles, ainda sem data de lançamento, é a animação “Arca de Noé”, dirigida por Sérgio Machado e inspirada na coletânea de Vinicius de Moraes.

“Eu faço uma ratinha brava pra caramba”, brinca ela, que participou da dublagem do longa ao lado de artistas como Adriana Calcanhott­o, Chico César, Rodrigo Santoro e Marcelo Adnet. A produção é assinada por Walter Salles.

“É uma história extremamen­te brasileira, que tem uma potência de ir para o mundo inteiro”, afirma Alice. Um projeto com os diretores Andrucha Waddington e Mini Kerti também já está sendo esboçado e em fase de captação de recursos.

O lançamento de “Matéria Escura”, nos próximos dias, chega após um ano em que Alice ficou mais distante de Los Angeles (EUA), onde mora, por causa da greve dos atores e roteirista­s, dedicando mais de seu tempo ao Brasil.

“O período mais em casa foi uma loucura, porque eu estava há sete anos filmando sem parar. De repente, quando você para, parece que está faltando uma parte do corpo”, brinca.

“Mas foi um processo muito importante, porque é uma luta sobre direitos”, acrescenta, ao falar sobre a greve. “O mundo mudou, a forma de a gente consumir entretenim­ento mudou, os streamings existem. E existe essa uberização de tudo. Os contratos não podiam seguir como antes.”

O 2023 de Alice também ficou marcado pelo fim de seu relacionam­ento com a atriz Bianca Comparato, após sete anos juntas. Sem rodeios, ela reconhece que o término, decidido em comum acordo, foi um processo acompanhad­o de muita dor, mas faz questão de escolher as palavras com esmero ao falar sobre a ex.

“Meu amor pela Bianca nasceu através de uma grande admiração por ela, como atriz, antes de conhecê-la. É, para mim, o relacionam­ento mais importante que já tive na minha vida, e continua sendo. Ele tem esse espaço no meu coração, essa grandeza.”

“Foi um término muito doloroso, porque tem muito amor. Mas o amor pode se transforma­r, e acho que é nesse lugar em que a gente está. Que é o mais importante, de estar junto para o resto da vida”, acrescenta, ao afirmar que as duas seguem muito amigas, além de sócias na produtora South.

Alice conversou com a coluna por videoconfe­rência desde o México, para onde viajou para apresentar o Prêmio Platino de Cinema Ibero-americano, no fim de semana passado, e fazer uma série de reuniões para discutir novos projetos. A atriz diz ter o desejo de cada vez mais ver produções conjuntas sendo realizadas entre países latino-americanos.

“A gente tem, claro, um desafio da língua, porque falamos português. Mas eu senti, vindo aqui para o Prêmio Platino, o quanto eles também olham pra gente e nos veem como um país autossufic­iente nesse lugar do entretenim­ento, que faz conteúdo pra gente mesmo”, afirma. “Acho muito importante abrir, dialogar, fazer coproduçõe­s, se fazer presente e ver projetos e criações de países latinos para que a gente também possa se integrar.”

Como atriz brasileira que há anos mantém residência nos Estados Unidos, Alice afirma que há cada vez menos espaço para personagen­s latinos estereotip­ados no entretenim­ento, ao passo em que eles ganham mais protagonis­mo nas tramas. “Isso já é uma conquista muito grande, que talvez não existisse 15 anos atrás”, diz.

Ela afirma ter sido, entre 2016 e 2021, a única atriz latina a estrelar uma série no horário nobre da TV a cabo americana com “Rainha do Sul”, atualmente disponível na Netflix. Alice atuou também como produtora-executiva da obra, que foi gravada e exibida durante a gestão Donald

Trump, que tinha no discurso anti-imigração uma de suas plataforma­s de governo.

“A gente tomava muito cuidado para não botar no roteiro algo que pudesse dar força a esse diálogo de ódio que ele tinha. E que, infelizmen­te, está voltando”, afirma, em referência à força eleitoral do político do partido Republican­o para o pleito deste ano.

Alice diz ver uma eventual vitória de Trump como uma mensagem ruim para todo o mundo. E afirma que, apesar de o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ter se tornado inelegível após ataques ao sistema eleitoral, os brasileiro­s também devem ter atenção em relação a discursos antidemocr­áticos.

“Esse discurso de ódio não reside só em Bolsonaro. Reside em seus aliados e em seus apoiadores também. Se não queremos que isso volte, temos que prestar atenção em que tipo de diálogo e que tipo de política a gente pode fazer para que esse tipo de governo não volte a comandar o país.”

Sobre o Brasil governado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a atriz diz acreditar que o país ainda passa por um processo de reconstruç­ão após a gestão de seu antecessor. Mas afirma que gostaria de ver mais avanços em relação à questão indígena.

“Infelizmen­te, é uma causa que a gente tem que ficar em cima. Os indígenas são as pessoas que estão na comissão de frente da batalha pelo clima, e são as pessoas que mais estão sofrendo, tanto com a violência quanto com o desmatamen­to, com a mudança climática, com a falta de peixe nos rios, que estão morrendo com metal no corpo. A crise dos yanomamis mostrou isso.”

“O meu sonho é que essa se torne a causa de todo mundo, não só de artistas, de políticos ou de jornalista­s, mas de qualquer pessoa. Ter consciênci­a sobre essa causa é ter uma consciênci­a cívica, porque são essas pessoas que, como diz o Davi Kopenawa, estão segurando o céu.”

“Demarcação de terra indígena significa o futuro do planeta. Um não anda separado do outro. A demarcação é sobre direitos indígenas, mas também sobre a possibilid­ade de futuro. A política nunca pode passar por cima disso.”

Recém-chegada aos 41 anos de idade, Alice afirma estar se voltando mais para si e desfrutand­o das transforma­ções vindas com a passagem do tempo. “Acho que tudo sobre idade é relativo, sobre o que é melhor ou pior. Mas acho que os 20 têm o frescor, a primeira prova de tudo, o primeiro olhar. Nos 30, acho que você está se formando ainda, e os 40, para mim, estão chegando de uma forma muito bonita, muito verdadeira”, diz.

“Estou querendo olhar para quem eu sou, para os meus desafios como pessoa, como mulher, como ser humano, de querer enfrentar eles, de querer aprender com as pessoas que estão em volta, de aceitar coisas em mim —às vezes, quando a gente é jovem, a gente se julga demais. Acho que, para mim, está vindo num lugar de maturidade também artística, de olhar e falar: ‘Nossa, já fiz tudo isso’. Está sendo bonito.”

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Gil Inoue/divulgação A atriz Alice Braga

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