Folha de S.Paulo

Invasão do Brasil por holandeses teve guerrilha na BA há 400 anos

Salvador foi ocupada em maio de 1624; invasores enfrentara­m cerco e tiveram líder militar assassinad­o

- salvador

Quando a esquadra com 26 navios, 500 canhões e 3.400 homens de guerra despontou nas águas calmas da Baía de Todos-os-Santos na madrugada de 8 de maio de 1624, o destino de Salvador já estava selado.

Houve uma resistênci­a inicial, mas, em menos de um dia, a capital da América portuguesa capitulou e foi tomada pelas tropas holandesas, que prenderam o governador Diogo de Mendonça Furtado, saquearam casas e percorrera­m a cidade em busca de uma carga valiosa: o açúcar.

A invasão holandesa a Salvador, que completa 400 anos nesta quinta-feira (9), marcou o acirrament­o da disputa entre potências da Europa em torno de interesses comerciais, foi combatida em uma espécie de guerra santa e se tornou o primeiro evento histórico de escala global em solo brasileiro.

A tomada da capitania da Bahia foi mais um capítulo da disputa entre a Espanha e os Países Baixos, que travaram a Guerra dos 80 anos.

Até o final do século 16, as províncias neerlandes­as —que incluíam a Holanda— eram parte do Império Espanhol. Mas as províncias do norte declararam independên­cia em 1581.

A Espanha retaliou impondo embargos aos neerlandes­es, que na época tinham uma das mais sólidas frotas comerciais do globo. Foi sustado o comércio entre os Países Baixos e Portugal, que desde 1580 fazia parte da União Ibérica após a morte do jovem rei dom Sebastião.

Como consequênc­ia, os neerlandes­es se viram apartados do comércio do açúcar, um dos mais cobiçados e rentáveis na época. A solução encontrada foi tentar eliminar os intermediá­rios e buscar produto na fonte, por meio de uma invasão e ocupação militar na América.

Para tocar a empreitada, os holandeses criaram em 1621 a empresa Companhia das Índias Ocidentais e decidiram tomar Salvador, principal porto do Atlântico Sul. O custeio da ocupação seria uma espécie de parceria público-privada, parte bancado pela empresa, parte pelas Províncias Unidas dos Países Baixos.

“O planejamen­to da invasão aconteceu em um período muito curto. Chegou-se a avaliar a possibilid­ade de enviar navios para Havana ou Chile. Mas acabaram decidindo por Salvador”, afirma Erik Odergard, pesquisado­r do Internatio­nal Institute for Social History, em Amsterdã.

Além de ser um polo produtor de açúcar, com engenhos na região do Recôncavo, Salvador era um importante centro político da colônia. A cidade tinha entre 10 mil e 12 mil habitantes, mas ainda não tinha um poderio militar —havia pouco mais de 450 homens de guerra para protegê-la no dia da invasão.

As tropas desembarca­ram nas proximidad­es da Barra e entraram na cidade-fortaleza, às 8h do dia 10, sem resistênci­a, pelo portão de São Bento. Destituído o governador, o coronel neerlandês Johan van Dorth foi alçado ao posto de chefe militar e assumiu o controle político de Salvador para o que seria a tarefa mais difícil: manter a ocupação.

“Ficar em Salvador foi algo bastante complicado para os holandeses. Eles não entendiam que a cidade, para sobreviver, precisava do Recôncavo. Salvador não sobrevive sem o Recôncavo”, explica o historiado­r Pablo Iglesias Magalhães, professor da Universida­de Federal do Oeste da Bahia.

Além de concentrar os engenhos de açúcar, as terras no entorno da Baía de Todos-os-Santos também forneciam farinha de mandioca e carne para a capital. Mas o comércio com os invasores foi interrompi­do —os portuguese­s foram proibidos de vender para os holandeses, sob pena de serem acusados de traição.

A resistênci­a aos holandeses se concentrou inicialmen­te na Aldeia do Espírito Santo, onde hoje fica o distrito de Abrantes, em Camaçari. Depois, se fixou no Arraial do Rio Vermelho, onde atualmente fica a comunidade do Alto do Peru, nas proximidad­es do Largo do Tanque, em Salvador.

O arraial chegou a abrigar 3.000 homens entre funcionári­os da administra­ção colonial, missionári­os jesuítas e guerreiros indígenas tupinambás. O chefe militar da resistênci­a foi o bispo dom Marcos Teixeira de Mendonça, religioso que pegou em armas contra os holandeses e morreu seis meses após a invasão.

A religião foi fermento ideológico para a guerra, opondo portuguese­s católicos e índios catequizad­os aos holandeses calvinista­s, que engrossara­m suas tropas com mercenário­s de outras nacionalid­ades, em sua maioria anglicanos, luteranos e até alguns católicos franceses que mudaram de lado na guerra.

Além dos mercenário­s, a tropa holandesa teve o reforço de um grupo de africanos escravizad­os. Eles foram recrutados logo após chegarem à Bahia em um navio negreiro e receberam a promessa de liberdade após a guerra.

Apesar do poderio militar, as tentativas dos holandeses de ocupar o Recôncavo não prosperara­m. Acostumado­s a batalhas em campos abertos, eles tiveram que lidar com inimigos que surgiam em pequenos grupos que atacavam e recuavam, em uma tática de guerra de guerrilha inspirada nos indígenas.

Na mata fechada, os mosquetes eram armas incompatív­eis com a agilidade das flechas envenenada­s. Em uma dessas emboscadas, ainda em julho, o chefe militar Johan van Dorth foi assassinad­o nas imediações de Água de Meninos, deixando a ocupação holandesa acéfala sem a sua principal liderança.

A ocupação de Salvador prosseguiu até 1º de maio de 1625, quando os holandeses capitulara­m semanas após a chegada de uma esquadra com 52 navios e 12.563 homens comandados pelos espanhóis.

Com a derrota, os holandeses foram rendidos, presos e enviados de volta para a Europa. Já os chefes africanos que haviam aderido às tropas dos Países Baixos pagaram com a vida e foram enforcados em praça pública.

A breve passagem dos holandeses por Salvador deixou poucas marcas na vida social e econômica de Salvador. Portuguese­s e espanhóis atuaram para apagar a presença dos inimigos, tirando da cidade até mesmo os corpos dos holandeses que estavam enterrados nas igrejas.

Na infraestru­tura, a principal marca foi a construção de uma represa que por séculos acreditou-se que seria o Dique do Tororó, um dos principais cartões postais da cidade.

Mas um mapa de 1624 atribuído ao engenheiro militar Joos Coecke, que foi adquirido pelo Instituto Flávia Abubakir e analisado por Pablo Magalhães em 2022, revelou que o dique dos holandeses ficava nas imediações da atual Baixa dos Sapateiros, e permaneceu ativo até o século 18.

A invasão holandesa a Salvador ficou marcada como o primeiro evento histórico com repercussã­o global que aconteceu em solo brasileiro, repercutin­do na Europa, África e Ásia diante do avanço das redes de informação a partir das grandes navegações.

“A tomada de Salvador repercutiu no planeta todo porque colocou sob ameaça o Atlântico Sul e suas conexões com a América, menina dos olhos da Espanha. A presença holandesa representa­va uma ameaça não só para a Bahia, mas para América espanhola, para as rotas para Índia e para o comércio de africanos”, afirma Magalhães.

Ao deixarem Salvador, os holandeses ainda tentaram conquistar terras do outro lado do Atlântico, em uma invasão à cidade de São Paulo de Luanda, em Angola, mas também falharam na primeira tentativa.

Voltariam ao Brasil em 1630, quando invadiram Pernambuco e mantiveram uma ocupação que duraria 24 anos, com marcas mais profundas na vida política, social e cultural do Nordeste brasileiro.

João Pedro Pitombo

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Imagens Instituto Flávia Abubakir 1 Gravura mostra batalha naval na Baía de Todos-os-Santos na invasão holandesa; 2 mapa atribuído ao engenheiro militar Joos Coecke mostra dique construído pelos holandeses
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