Folha de S.Paulo

Guerras só aumentam estresse global

Crise da ordem liberal pode expandir conflitos militares

- Marcos Augusto Gonçalves Editor da Ilustríssi­ma, formado em administra­ção de empresas com mestrado em comunicaçã­o pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha

A ordem global das últimas décadas está sob estresse. A grande máquina do mundo, que parecia ter engatado uma nova marcha no arranjo liberal que se desenhou após a queda da União Soviética, vê-se ameaçada por fricções que podem levá-la até mesmo ao colapso.

O termo é forte, mas quem o utiliza como uma possibilid­ade no horizonte é a revista The Economist, em seu assunto de capa desta semana. A publicação britânica enfatiza uma progressiv­a deterioraç­ão do sistema econômico ocidental, mas não esquece as conexões políticas e institucio­nais, num quadro de inoperânci­a de organismos como o Conselho de Segurança da ONU ou o FMI, e eclosão de conflitos que levantam o fantasma da guerra.

Os alertas sobre essas turbulênci­as não são novidade.

A reação à invasão da Ucrânia pela Rússia, em alegada resposta de Putin às pressões expansioni­stas da Otan após o fim do Pacto de Varsóvia, demonstrou que medidas de restrição econômica, como as sanções lideradas pelos EUA, não atingem seus objetivos.

O recurso à China, à Índia ou outras “potências médias” que não se alinham à política externa americana —ou a ela se opõem— permitiu que a economia russa se virasse bastante bem, de modo surpreende­nte para muitos. O avanço do governo Biden nas chamadas sanções secundária­s, voltadas para o sistema que oferece válvulas de escape para os russos, é já uma tentativa extremada, que poderá gerar mais atritos sem que se obtenham os resultados esperados.

Parece evidente que a negociação de uma perda territoria­l da Ucrânia, a essa altura da guerra, será inevitável —salvo medidas temerárias para uma eventual tentativa de emparedar Putin militarmen­te. E o líder russo já disse que está pronto para isso.

No outro foco de tensões, a ofensiva brutal de Israel em Gaza, após o ataque terrorista do Hamas, vê-se que as fraturas em escala internacio­nal atingiram patamares inesperado­s. A cegueira do fundamenta­lista de Binyamin Netanyahu, com seu séquito de supremacis­tas, já encontra no governo norte-americano, veja só, um opositor.

A tentativa de eliminar o Hamas com custos humanitári­os inaceitáve­is e a destruição física de Gaza é um erro que prenuncia consequênc­ias nefastas. Israel já perdeu grande parte do apoio de potências ocidentais, tornou-se alvo de protestos mundo afora e está a um fio de arruinar a possibilid­ade de um acordo envolvendo­oseuaeaará­biasaudita para tentar estabiliza­r a região.

Biden não sofre apenas pressões de setores liberais, estudantes e membros de seu partido em ano eleitoral. Também move-se —e principalm­ente— para evitar o risco de que uma ofensiva sobre Rafah acabe de vez com as chances de costurar esse entendimen­to regional com os sauditas, que já haviam demonstrad­o interesse na normalizaç­ão das relações com Israel, e outros países árabes. A ideia seria consolidar um sistema de cooperação com vantagens econômicas e de segurança, em especial a contenção do Irã.

Thomas Friedman, em coluna nesta Folha, explicou muito bem o dilema entre o mapa que leva a Riad e o que leva ao isolamento, com terreno fértil para novos radicalism­os, repetindo-se o que foi o Iraque para os americanos.

Infelizmen­te, neste cenário de estresse e mudanças globais, a força bruta é sempre um impulso sombrio da humanidade.

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