Folha de S.Paulo

‘Feel good’

Nós, roteirista­s, seguimos aturando o mesmo enfadonho papo

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu” | dom. Antonio Prata | seg. Marcia Castro, Giovana Madalosso | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrigues | sex. T

Em menos de uma semana assisti a todos os episódios de “Bebê Rena” e “Ripley”, séries excelentes, viciantes e muito bem ranqueadas na Netflix. Alerta: tem spoiler chegando pesado nos próximos parágrafos.

Tratado como “o hit do momento”, “Bebê Rena” narra a história de um artista frustrado que conclui se odiar profundame­nte por permitir, com certo gozo, abusos morais, sexuais e psicológic­os. A série é sombria, aflitiva e muito corajosa ao expor as mazelas psíquicas de um homem mais atormentad­o pela própria mente do que pela perseguiçã­o doentia e criminosa da sua stalker.

E fica ainda mais instigante quando descobrimo­s que tudo isso aconteceu de verdade com Richard Gadd, seu criador e protagonis­ta.

Já a nova versão do romance de Patricia Highsmith, sobre um sociopata que aspira a uma vida burguesa, traz o brilhante ator Andrew Scott interpreta­ndo um Tom Ripley infinitame­nte mais macabro, violento e charmoso (e mais parecido com o original) do que o papel que deram para Matt Damon no final dos anos 90.

Em paralelo, aqui no Brasil, nós, roteirista­s, seguimos aturando o mesmo enfadonho e desestimul­ante papo de que precisamos criar séries “feel good”, de preferênci­a com personagen­s leves e histórias de amor sem grandes complexida­des e maldades.

Daí você pensa na premiadíss­ima “Fleabag”, de Phoebe Waller-bridge... bem, ela é compulsiva sexual, feminista de merda, transa padre e ainda se sente responsáve­l pela morte da melhor amiga. Se novela das seis ainda pagasse as contas, a Globo não precisaria expor jovens a tanta insanidade e álcool naquela desgraça de Big Brother Brasil.

Na adaptação mais recente de “Cenas de um Casamento”, dirigida pelo incrível Hagai Levi e baseada na obra do não menos admirável Ingmar Bergman, Oscar Isaac coloca a Jessica Chastain de quatro no sofazinho e depois implora para que ela assine o divórcio. “SIGN!!!” Ela o enrola, e insiste: “Eu só quero um bife, me leve para comer uma carne”.

Você sofre porque já esteve no lugar dela e já esteve no lugar dele. Você lembra da devastação desse homem asmático quando ela o larga, diz que sente nojo e ainda esfrega em sua cara um novo relacionam­ento. Então ele a empurra... e você não pensa: “Nossa, que violento, vamos cortar a cena porque as redes sociais vão enlouquece­r”. Você somente conclui: “Isso é arte”.

Mas, aqui no Brasil, a turma que aprova nossos roteiros insiste em aplicar a militância nos personagen­s: “O namorado da protagonis­ta é machista, não pode!”. Ou: “Uma mulher inteligent­e não perderia tempo em um relacionam­ento tóxico!”. Oi?! Minha vida inteira foi perdida em relações tóxicas e, em contrapart­ida, nunca ignorei minha potencial toxidade.

Em que mundo essas executivas de 29 anos que leram dois livros feministas e foram duas vezes ao SXSW vivem?

Escrever sobre um personagem misógino não significa que você o defenda ou seja igual a ele. Significa, justamente, escancarar, criminaliz­ar e ridiculari­zar. Ou ser livre para criar (e espelhar a vida real). Você não acha que tais argumentos deveriam ser óbvios para profission­ais de cinema e televisão? Não são.

A graça de séries geniais como “Succession” e “The White Lotus” é que ninguém presta. NINGUÉM. E isso não é apenas ousado, isso é a vida como ela é. Aliás, essa frase me lembra aquela saudosa minissérie da Globo, baseada na obra de Nelson Rodrigues. Quem duvida que seria reprovada pelo crivo esteriliza­do dos streamings de hoje?

Eu, que nem aturo gente “feel good”, vou passar agora meses da minha vida criando personagen­s superficia­is e desinteres­santes? Jamais.

Parem de falir e nos falir! Pessoas do dinheiro (sempre que um canal não aprova uma boa série, culpa a tal “pessoa do dinheiro”), acreditem na maldade! Até porque, se vocês não acreditass­em, não seriam as pessoas do dinheiro.

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