Folha de S.Paulo

Uma maratona de martinis

- Daniel de Mesquita Benevides folha.com/geloegim

Gary Shteyngart é de longe o escritor mais ligado a coquetéis que existe. Há umas dez entrevista­s ou reportagen­s com ele sobre o assunto. Isso porque o autor dos engraçadís­simos “Fracassinh­o” e “Lake Success” sempre coloca taças nas mãos de seus personagen­s. É como ele resiste à visão de um dry martini ao fim da tarde. Sublima na ficção.

Não por muito tempo. Na ternura da noite a sublimação perde para a concretude. E aí ele volta a ser o russo que nasceu na antiga Leningrado, hoje São Petersburg­o, e foi pequeno para os EUA. Os ex-soviéticos, como se sabe, além de ex-comedores de criancinha­s, carregam sempre sua própria garrafa de vodca, para garantir a cota diária. E começam a beber a “aguinha” no café da manhã. “Dê-lhes um frasco de shampoo e eles farão uma festa”, diz Shteyngart sobre seus ancestrais.

Segundo a Modern Drunkard Magazine, Tchekhov teria declarado que uma refeição perfeita consiste em “um copo de vodca, sopa de repolho fresca com kasha amanhecido; dois copos de vodca, leitão com raiz-forte; três copos de vodca, raiz-forte, pimenta-caiena e molho de soja; quatro copos de vodca; sete garrafas de cerveja”.

Em seu mais recente romance, “Our Country Friends”, Shteyngart volta ao cenário da pandemia e descreve o retiro de um grupo de amigos para o campo —coisa que ele fez na vida real. Nessa nova leitura do “Decameron”, o gibson ocupa a função de anestesia diante do apocalipse. Versão do dry martini com cebola em vez de azeitona, ele também é bebido em outra circunstân­cia pelo escritor. A pedido da New Yorker, Scary Gary, alcunha dos tempos de escola por conta de excessos cabeludos, legais e ilegais, sai em busca do melhor martini de Nova York.

Missão quase impossível, mas que missão! Para melhor cumpri-la, ele recruta um agente por noite entre seus amigos, como Matt Hranek, autor de “The Martini: Perfection in a Glass”, e a atriz J. Smith-cameron, a Gerri de “Succession”.

Ela segue o espírito da personagem e diz que ensinou o básico da vida para sua filha pequena: fazer um bom dry martini e preparar uma xícara decente de café. Educação é isso. Por sua vez, Scary Gary explica a gênese da empreitada: quando acabou a pandemia e os “restaurant­es reabriram, soltei a mandíbula e deixei-a aberta para mergulhar numa Saturnália diária”.

O rito pagão passou pelos melhores bares da famosa cosmópole e, claro, pelos melhores martinis, em mil disfarces: o immortal, o Dukes, o vesper, o smoked, o martinez, o cigarette, o 1884. Alguns beiram a apropriaçã­o indébita, valendo-se do nome só porque vestem-se com a icônica taça em V. É como usar Chanel e dizer que é a Audrey Hepburn.

Outra razão: pré-diabético, decidiu se afogar em martinis porque eles contêm bem menos açúcar que cerveja ou vinho. “Além do que, martinis deixam você feliz mais rapidament­e, então não é preciso tomar muitos”. Não é preciso, mas tampouco é proibido.

À parte o clássico original, o favorito dele é o breakfast martini. Foi criado em 1996 para o café da manhã, como o nome diz. Salvatore “The Master” Calabrese, bartender de Londres, tomava só um expresso ao acordar. Sua mulher insistiu para que ele comesse ao menos uma torrada com geleia. Surgiu assim. E vale por um bifinho.

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