Folha de S.Paulo

Campos Neto busca almoço grátis

BC deve obter maior legitimida­de social antes de autonomia financeira e orçamentár­ia

- André Roncaglia Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvi­mento pela FEA-USP

A lei complement­ar 179/2021, que conferiu autonomia operaciona­l ao BC (Banco Central), estipulou mandato de duração fixa para a diretoria e a presidênci­a. Todavia, não previu instrument­os de controle social sobre o banco.

Aprofundan­do esse insulament­o institucio­nal do BC, tramita na CCJ (Comissão de Constituiç­ão e Justiça) do Senado a proposta de emenda à Constituiç­ão nº 65, de 2023, que concede autonomia financeira e orçamentár­ia ao Banco Central do Brasil, transforma­ndo-o em empresa pública desvincula­da do Tesouro Nacional. Com relatoria do senador Plínio Valério (PSDB-AM), o amplo apoio do PL e do União Brasil deixa nítido seu viés conservado­r.

Campos Neto articula nos bastidores do Congresso a aprovação da PEC até junho. Alega dificuldad­es orçamentár­ias que podem ameaçar a operação do Pix. Porém, no governo Lula, a queda real acumulada do orçamento do BC não chega a 2%. Ao longo da gestão Bolsonaro, entre 2019 e 2022, a perda real foi de 20%. Campos Neto patrocinou o desmonte do BC e agora usa a legítima greve dos funcionári­os do banco —que não apoiam o projeto— para concluir o serviço

A PEC 65 concede mais poder à autarquia sem definir, previament­e, instrument­os de responsabi­lização e transparên­cia. Além de agravar o déficit democrátic­o do BC, o projeto gera problemas técnicos na relação Banco Central/tesouro Nacional, como destacou minha colega Larissa Dornelas (UFPR), em artigo para o Le Monde Diplomatiq­ue.

É imperioso evitar essa mudança constituci­onal sem a devida discussão com a sociedade. Enquanto isso, o BC deve promover uma agenda positiva que restaure sua força institucio­nal e amplie o escopo social de sua atuação. Exemplo dessa força são as iniciativa­s tecnológic­as (Pix, open finance e Drex) que atravessar­am vários governos, como destacou meu colega Nelson Barbosa ( folha.com/3mpz42jc).

Além da tecnologia, há, pelo menos, duas outras frentes em que o BC pode avançar: a construção e a divulgação de indicadore­s econômicos mais variados e a diversific­ação das vozes que o Copom escuta.

Primeiro, a crise global de 2008 gerou uma proliferaç­ão de indicadore­s financeiro­s na literatura e em diversos bancos centrais. Na linha do Fed, o BC pode divulgar séries de prêmios de risco na estrutura a termo da taxa de juros (calculada pela Anbima), bem como expectativ­as empresaria­is e dos consumidor­es (compiladas pela FGV). É preciso concluir a construção do índice de condições financeira­s (parada desde 2020), pelo qual se conhece a “Selic efetiva”, isto é, o efeito estimulant­e ou restritivo da política monetária sobre a economia, tal como compilado pelo Fed de Chicago.

Segundo, como destaquei na coluna de 10/2/2023, o Focus reproduz a visão (e o viés) de um grupo restrito de financista­s. Ampliar o rol de vozes pode diluir esse viés. Nesse espírito, o Fed publica oito vezes por ano o “Livro Bege”, no qual reúne comentário­s de todo o país, a partir de reuniões com executivos de empresas, trabalhado­res e líderes comunitári­os.

Tom Barkin, presidente regional do Fed em Richmond, vai além. Ele visita pessoalmen­te os municípios do seu distrito para dialogar com empresas e agremiaçõe­s locais, organizaçõ­es sem fins lucrativos e conselhos de desenvolvi­mento local. Coleta informaçõe­s diretas sobre o mercado de trabalho, pressões de custo de fornecedor­es, gargalos logísticos, concorrênc­ia com a China, o acesso dos trabalhado­res à habitação, sentindo os efeitos da taxa básica de juros na ponta.

Aqui, as reuniões da diretoria do BC se restringem a agentes do mercado financeiro e consultori­as especializ­adas. É hora de o BC furar a bolha!

O BC deve conquistar maior legitimida­de social antes de obter autonomia financeira e orçamentár­ia. Como diria Milton Friedman: não existe almoço grátis.

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