Folha de S.Paulo

As vidas de Ayrton Senna

Novo documentár­io sobre o piloto repete narrativa do herói nacional

- Senna por Ayrton

Gustavo Alonso Doutor em história, é autor de ‘Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernizaç­ão Brasileira’ e ‘Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga’.

Na semana passada foi lançado o documentár­io “Senna por Ayrton” no streaming do Globoplay. O trailer do documentár­io entusiasma ao anunciar: “Essa história já foi contada inúmeras vezes por diversos personagen­s. Mas agora trará apenas o olhar do seu protagonis­ta”. Tudo parecia encaminhar para a abordagem original do título. Conhecería­m os as lacunas ainda não contadas sobre o nosso herói nacional.

Mas o documentár­io, dirigido por Rafael Pirrho, frustra aqueles que buscam os silêncios e a intimidade da vida do campeão. O seriado documental em três episódios do Globoplay repete, embora de forma até competente, a mesma forma de se contar a trajetória de Senna.

Para quem não se lembra dos feitos heróicos de Senna, o documentár­io é um prato cheio. Bem contado, pontuando os dramas de cada temporada, bonitos gráficos e ágil na forma cronológic­a de esmiuçar a carreira do piloto, o documentár­io cumpre o papel de reapresent­ar Ayrton Senna às novas gerações. Mas, ao contrário do que pretende o título, pouco do ser humano aparece no filme. Conhecemos apenas o Senna piloto, quase nada do Ayrton.

A ideia da série documental era deixar que o próprio piloto contasse sua história sem a suposta interferên­cia narrativa alheia, um truque muito comum em documentár­ios. O que seria um bom mote se revela um repeteco narrativo, pois a versão que temos sobre Senna sempre foi aquela que ele mesmo ou os de seu entorno quiseram.

Depois de sua morte, perdurou a versão familiar do mito, capitanead­a pela irmã Viviane Senna, que consolidou a mitologia do herói nacional. Como se sabe, a família controla com mão de ferro o legado de Senna, determinan­do quem deve ou não esboçar uma biografia do piloto. E qualquer assunto pessoal é logo boicotado.

Filmes como a produção internacio­nal “Senna”, de 2010, autorizada pela família, já haviam contado a história do mito das pistas tal como repete o documentár­io do Globoplay. Livros como “The Hard Edge of a Genius” (1990), de Christophe­r Hilton, autorizado pe

Nada que se diga da vida pessoal tirará o brilho do profission­al dedicado e competitiv­o, um grande gênio das pistas. Senna sempre será grande

lo próprio Senna em vida, já tinham dado a versão autorizada da lenda sobre sua vida profission­al.

Era necessário mais um documentár­io para ilustrar as façanhas de Senna?

Alguém não viu suas vitórias ilustres no Japão e em Interlagos? Quem não conheceu a novelizaçã­o da disputa entre Prost e Senna ou entre Piquet e Senna, tão alimentada por Galvão Bueno, compadre do piloto? Alguém nunca viu as cenas da volta magistral em Donington Park, na chuvosa Inglaterra em 1993, onde ele passou quatro pilotos na primeira volta assumindo a liderança? Pois o documentár­io repisa estes mesmos marcos sem acrescenta­r quase nada à biografia de Senna.

O melhor trabalho sobre o herói nacional ainda é o livro “Ayrton: O Herói Revelado”, publicado pelo jornalista Ernesto Rodrigues em 2004, sem o aval ou participaç­ão da família do piloto, que se negou a dar entrevista­s. O que seria uma perda revela-se o grande valor da obra, que consegue abordar a intimidade do piloto sem pudor, mas de forma respeitosa. Amores, relações familiares, amigos: todos esses fatores da vida de Ayrton ajudam a compreende­r o fenômeno que foi Senna, algo praticamen­te ignorado pelo documentár­io do Globoplay, apesar da promessa do título.

A obra de Rodrigues ganhou nova edição nestes 30 anos da morte de Senna e merece atenção. Ela é a única síntese da vida de Ayrton que toca em aspectos silenciado­s nos documentár­ios e obras autorizada­s, além de abordar a heroicizaç­ão profission­al do piloto. Um fato iluminado pela obra é o primeiro casamento de Senna. Ele se casou com Lilian de Vasconcelo­s em 1981, antes de seu primeiro ano como piloto na Inglaterra. A primeira e única mulher de papel assinado do piloto, que também foi amiga de infância, é um personagem limado de quase todas as biografias oficiais, menos da biografia de Ernesto Rodrigues.

O fato de Ayrton ter uma relação de admiração mas também desejo de superar o pai fazendo uma trajetória diferente do self-made man que, nascido numa família simples, tornou-se um grande industrial e fazendeiro, também ajuda a compreende­r a ambição do jovem Ayrton. A preferênci­a da família Senna por Xuxa e o desprezo por Adriane Galisteu também são aprofundad­os na obra e dão o que pensar.

Em meio às rememoraçõ­es da data redonda, foi anunciado pela Netflix o lançamento de uma minissérie de ficção inspirada na história de vida de Senna, ainda sem data exata para o lançamento este ano. A série foi autorizada pela família. Apesar de o trailer apresentar uma belíssima produção, também parece anteceder que nada de novo se acrescenta­rá. Tomara que nos surpreenda­mos.

Nada que se diga da vida pessoal tirará o brilho do profission­al dedicado e competitiv­o, um grande gênio das pistas. Senna sempre será grande. Mas ainda falta à cinematogr­afia mundial um filme à altura não apenas do gigante Senna, mas também do homem Ayrton.

Globoplay, 1 temporada, 3 episódios

 ?? Reprodução ?? Ayrton Senna, no Safety Car, comemorand­o a vitória no GP Brasil de F1
Reprodução Ayrton Senna, no Safety Car, comemorand­o a vitória no GP Brasil de F1

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