Folha de S.Paulo

Reportagen­s forçam Suprema Corte dos EUA a criar regras

‘Friends of the Court’ mostra como juízes ganharam e não divulgaram presentes e viagens de bilionário­s

- José Marques

Uma investigaç­ão jornalísti­ca sobre a relação de integrante­s da Suprema Corte dos Estados Unidos com bilionário­s se tornou referência em discussões sobre a necessidad­e de transparên­cia do Judiciário e de prevenção de potenciais conflitos de interesse.

A série de reportagen­s “Friends of the Court” (Amigos da Corte), publicada ao longo de 2023 pelo site Propublica mostrou como os magistrado­s do Supremo americano (chamados por lá de “justices”) ganharam viagens e presentes de magnatas e não divulgaram os benefícios.

“Friends of the Court” ganhou o prêmio Pulitzer na semana passada, depois de ter forçado o tribunal a elaborar pela primeira vez um código de conduta, com regras para o recebiment­o de presentes e também padrões para que os juízes recusem benefícios que possam influencia­r em suas decisões.

O código foi visto como um marco para o tribunal. No entanto, especialis­tas apontaram que ele esbarra na falta de explicação sobre como essas regras serão aplicadas na prática e quem pode determinar que elas foram descumprid­as.

As principais revelações da série da Propublica são que um bilionário do ramo de imóveis, Harlan Crow, comprou propriedad­es no estado da Georgia para a família do magistrado Clarence Thomas. Também bancou os estudos de um dos filhos de Thomas em uma escola privada.

O magistrado fez ao menos 38 viagens de férias com ricos empresário­s a bordo de iates e jatinhos, além de ter recebido ingressos para áreas VIP de eventos esportivos profission­ais e de universida­des.

As reportagen­s são acompanhad­as de fotos de magistrado­s com milionário­s e detalhes das viagens que eles fizeram, a partir de documentos e entrevista­s feitas com dezenas de pessoas.

Uma das imagens pitorescas publicadas na primeira reportagem sobre o tema é uma pintura realista exposta dentro do resort privado de Crow, que fica à beira de um lago no estado de Nova York.

A pintura representa uma conversa entre Thomas, Crow e outros personagen­s ligados a políticos conservado­res. Eles estão sentados, fumando charutos, em frente a uma estátua de um indígena de braços abertos.

Além de Thomas, a série de reportagen­s mostra que outro juiz da Suprema Corte, Samuel Alito, voou para uma viagem de pescaria no Alasca em 2008 no jatinho particular de um investidor que é um importante doador do partido Republican­o.

Nos anos seguintes, o fundo desse bilionário, Paul Singer, ingressou com ações na corte pelo menos dez vezes.

A Suprema Corte dos EUA tem nove integrante­s. Thomas foi escolhido por George H. W. Bush, o pai, em 1991, e Alito por George W. Bush, o filho, em 2006.

Esses benefícios não eram tornados públicos pelos magistrado­s, e parte deles vai de encontro a uma lei federal aprovada após o escândalo de Watergate, nos anos 1970.

Após as primeiras reportagen­s, Thomas disse que os Crows estavam entre os seus “amigos mais queridos”. “Como amigos que somos, nos juntamos a eles em uma série de viagens familiares”, afirmou.

Já Alito disse ao Wall Street Journal que, quando as companhias de Singer acionaram a corte, não estava ciente da conexão do bilionário com os casos. Ele disse que nunca discutiu negócios ou assuntos relacionad­os à corte e que falou com Singer em poucas ocasiões.

O Pulitzer justificou o prêmio afirmando que as reportagen­s foram ambiciosas e inovadoras e que romperam o “grosso muro de sigilos em torno da Suprema Corte” ao revelar como um pequeno grupo de bilionário­s com influência política cortejaram os magistrado­s com “presentes e viagens de luxo”.

Também destacou como resultado das reportagen­s a criação do código de conduta da corte.

Apesar da tímida reação da corte americana, o constrangi­mento com as revelações sobre os magistrado­s contrasta com a atitude de parte da cúpula do Judiciário brasileiro em situações de potencial conflito.

Aqui, em diversas ocasiões, a falta de transparên­cia sobre as relações de ministros das cortes superiores com empresário­s e políticos prevalece, e às vezes questionam­entos a esse respeito são tratados com desprezo por magistrado­s.

Uma parcela de ministros tenta, por exemplo, normalizar a realização de eventos fechados na Europa bancados por empresas e empresário­s com interesses em ações que tramitam no STF (Supremo Tribunal Federal) e no STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Nem sequer a agenda da maioria dos ministros do Supremo é divulgada, assim como não são informados quem são os financiado­res e quanto é pago para que eles participem de eventos —e estiquem com outras agendas— ao redor do mundo.

Ao contrário das demais cortes brasileira­s, o Supremo não está sob o guarda-chuva do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), órgão que fiscaliza o Judiciário.

Em 2008, o CNJ aprovou um Código de Ética da Magistratu­ra, que tem afirmações subjetivas sobre o que o magistrado pode receber.

Diz, por exemplo, que “é dever do magistrado recusar benefícios ou vantagens de ente público, de empresa privada ou de pessoa física que possam compromete­r sua independên­cia funcional”.

Afirma ainda que o magistrado deve “adotar as medidas necessária­s para evitar que possa surgir qualquer dúvida razoável sobre a legitimida­de de suas receitas e de sua situação econômico-patrimonia­l”.

“Como amigos que somos, nos juntamos a eles em uma série de viagens familiares Clarence Thomas magistrado da Suprema Corte dos EUA, ao explicar viagens bancadas por bilionário

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Evelyn Hockstein -7.out.22/reuters O magistrado da Suprema Corte dos EUA Clarence Thomas

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