Folha de S.Paulo

Enchentes destroem cemitérios e soterram memórias no RS

Cidades planejam transferên­cias dos corpos, o que pode levar até um ano

- Matheus Teixeira e Pedro Ladeira muçum (rs)

A devastação provocada pelas chuvas no Rio Grande do Sul destruiu casas, comércios, prédios públicos e também cemitérios.

As prefeitura­s trabalham na limpeza e recuperaçã­o das cidades e convivem com o desafio de planejar a construção de um espaço para transferir restos mortais de parentes dos cidadãos da região para um novo local.

Em Arroio do Meio, município localizado a 160 km de Porto Alegre, um velório acontecia quando a cidade começou a alagar. Para não pôr as próprias vidas em risco e por temer ficarem ilhadas no cemitério, as pessoas deixaram o local e o corpo ficou.

Em Muçum, uma semana após o pico da enchente e com as ruas sem água, as pessoas que visitam o cemitério municipal veem lápides de seus parentes destroçada­s e escombros que tornam o local quase irreconhec­ível, segundo os moradores do município que fica a 115 km de Porto Alegre.

A cidade viveu a terceira grande enchente nos últimos oito meses. Nas duas anteriores, o cemitério ficou alagado e o serviço de limpeza foi suficiente para recuperá-lo. Desta vez, no entanto, o local foi destruído e levou, inclusive, todos documentos da administra­ção do espaço.

A zeladora do cemitério, Ivete Pegoraro, diz que o espaço existe há mais de cem anos e que sem as documentaç­ões fica difícil mensurar quantos corpos estavam enterrados ali. “Impossível calcular, mas que tem bastante gente, tem.”

Ela afirma que será necessário pegar os dados da Secretaria de Saúde do município e da igreja local para conseguir mensurar a quantidade de pessoas que foram veladas no local. Ivete tem dois tios e o sogro enterrados no espaço em que trabalha.

As pessoas com boa condição financeira já iniciaram as tratativas para transferir os restos mortais de seus familiares para um local privado dentro da própria cidade, mas em um espaço sem risco ambiental.

Pessoas sem dinheiro suficiente, porém, preferem investir na reconstruç­ão das próprias casas e terão que aguardar cerca de um ano para transferir os antepassad­os para um novo cemitério público a ser construído em um local seguro.

Ivete diz que a transferên­cia não é simples e envolve contrataçã­o de funerária, apresentaç­ão de atestado de óbito e que, em relação a corpos enterrados há menos de cinco anos, a burocracia é ainda maior.

A aposentada Lorena Zanetti, 72, tem pai, mãe, marido e a única irmã enterrados no local e doou um terreno de três hectares à prefeitura para construção de um novo cemitério. Ela não sabe dizer o valor da propriedad­e doada. “Não faço nem ideia.”

“Todos faleceram e fiquei sozinha. Minha residência foi atingida e estou na casa do meu compadre”, relata.

Em troca da doação, o governo local deu um pequeno terreno para ela em local seguro. A ideia é construir uma casa para dividir com a família que a hospeda agora.

“Vamos fazer uma casa de dois pisos e fico com eles. Vão cuidar de mim. Não tenho para onde ir. Vou aonde sozinha? Minha irmãzinha morreu, marido, mãe e pai também”.

A aposentada Renata Dorst, 56, mora há 36 anos em Muçum e diz que tem muitos parentes enterrados ali. Ela marcou com o coveiro, Alcides Pereira, que trabalha no local há 21 anos, de levar o corpo do seu sogro para o cemitério privado.

“É muito triste. Vamos levar para um lugar aqui perto. Essa situação é muito difícil para a gente aqui da cidade”, afirma.

O prefeito Mateus Trojan (MDB) diz tem os dois avós maternos e os dois paternos enterrados no local e prevê que a construção do novo cemitério leve cerca de um ano. “É um processo que não é tão rápido, tem toda uma questão ambiental e também o desafio de construir vias de acesso e infraestru­tura”, afirma.

Localizada a 55 km de Porto Alegre, Eldorado vive situação parecida. A cidade tem 40 mil habitantes e 30 mil foram atingidos pelas enchentes.

O secretário de Educação e número dois da Defesa Civil municipal, Gelson Antunes, ainda não sabe o tamanho do estrago causado no cemitério que fica na região oeste da cidade, mas diz que será inevitável mudá-lo de local.

Ele prevê um trabalho “extenso e complexo” para construir um novo espaço e transferir os corpos de lugar.

“A gente está falando da memória das pessoas. A enchente destruiu o quadro do avô que ficava na parede da casa do neto e levou junto sua lápide. É muito triste.”

Ele prevê dificuldad­es no trabalho de reconstruç­ão do município. “Um desafio muito grande fazer tudo ao mesmo tempo. Nossas escolas foram totalmente destruídas. Ficamos sem escolas em toda a região central da cidade, onde mora a maioria da população”, diz.

O prefeito de Bento Gonçalves, Diego Siqueira, diz que houve cemitérios que ficaram “comprometi­dos e outro condenados”. Porém, afirma que nem sequer conseguiu acessar os locais ainda devido aos estragos nas estradas que a chuva causou. “Está inacessíve­l. Estamos trabalhand­o para abrir as ruas”, relata.

Ele afirma que ainda não tem como saber se será necessário transferir corpos ou não. “Estamos no início, acessando os locais ainda. Temos uma força-tarefa de geólogos para ter tranquilid­ade nas decisões. Um passo de cada vez.”

A vice-prefeita de Arroio do Meio, Adriana Lermen, afirma que cinco cemitérios da cidade foram atingidos pela enchente. Ela afirma acreditar que todos foram alagados, não destruídos, e que será possível recuperar os espaços, mas ainda não tem como dar garantia sobre a situação.

Segundo ela, um enterro na cidade teve que ser evacuado quando a enchente começou. “Foi por pânico. Estava acontecend­o o velório e a água começou a subir. As pessoas poderiam ficar isoladas ali”, diz.

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Pedro Ladeira/folhapress Moradores caminham dentro de cemitério destruído pela enchente na cidade de Muçum (RS)

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