Folha de S.Paulo

Armações de um subversivo

- Por Andrea Ormond Escritora e crítica de arte, publicou ‘Walter Hugo Khouri, O Ensaio Singular’ (2023)

A vida de Antonio Calmon é tão intrigante quanto sua obra. Cria da turma do cinema novo, ele se jogou na contracult­ura no final dos anos 1960, passou fome e viveu o amor livre, e logo depois se firmou como diretor de policiais e pornochanc­hadas iconoclast­as. Nos anos 1980, contratado pela Globo, criou programas para crianças e adolescent­es de imenso sucesso, como ‘Armação Ilimitada’, ‘Top Model’ e ‘Vamp’

O amazonense Antonio Calmon,78, poderia ter encerrado sua carreira no início dos anos 1980, logo a póster lançado o filme“Garota Dourada ”(1984). Já havia deixados e uno mena história do cinema brasileiro, dirigindo filmes de gêneros variados, como os policiais“Eu Matei Lúcio Flávio ”(1979) e“Terrore Êxtase ”(1979), as comédias“Gente Fina É Outra Coisa ”(1977) e“O Bom Marido” (1978), além de ter sido assistente de Glauber Rocha, Cacá Diegues e Arnaldo Jabor.

Sem saber, aos 39 anos, Calmon iniciava mais uma encarnação de artista. Contratado em 1985 pela Rede Globo, passou a integrar o núcleo de dramaturgi­a da emissora. Deixou as narrativas de crimes, a pornochanc­hada e dialogou com crianças e adolescent­es.

Foi assim no seriado “Armação Ilimitada” (1985) e em novelas como “Top Model” (1989) e “Vamp” (1991). Ensaiou esse movimento a partir de “Menino do Rio” (1982), quando sintetizou em filme a “geração saúde”, vendida da zona sul carioca para o resto do Brasil.

Uma lenda para os quarentões e cinquentõe­s nostálgico­s de hoje, sinônimo da juventude dos anos 1980, Antonio

Calmon sumiu da mídia desde que seus últimos trabalhos na Globo não conseguira­m o sucesso esperado. Raramente dá entrevista­s. Durante a pandemia, escreveu um romance que pretende lançar ainda neste ano. “É a história de um amor que tive. Um homem que foi assassinad­o por um policial.”

Calmon convive com amigos jornalista­s e youtubers. Alguns deles nem sonhavam nascer quando estreou em 1965 o curta-metragem “Infância”, em concurso promovido pelo Jornal do Brasil.

“Antes de conhecer Calmon, vi seu curta-metragem”, recorda Cacá Diegues. “Estava no júri do festival, tinha terminado ‘Ganga Zumba’ e fiquei fascinado com o filme dele, transborda­va talento. Fiz de tudo, mas não consegui que fosse o vencedor daquele ano. Então, inventei ali mesmo o prêmio ‘Cacá’, para ele ser assistente de direção do meu próximo filme, ‘A Grande Cidade’.”

“A Grande Cidade” (1966) marcou a entrada de Calmon no cinema novo. Permaneceu alguns anos abraçando o rótulo de cinemanovi­sta, época em que continuou a ser assistente de direção, dessa vez de

Glauber Rocha, em “Terra em Transe” (1967) e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969).

Inquieto, em 1969 abandonou as filmagens de “Brasil Ano 2000”, não sem antes provocar o diretor Walter Lima Júnior: “Walter, quando o navio vai afundar, os ratos são os primeiros a saltar fora. E eu sou um rato...”.

Ainda fez a direção de produção de “Pindorama” (1970), a convite de Arnaldo Jabor, até realizar seu primeiro longa-metragem, “O Capitão Bandeira Contra o Doutor Moura Brasil” (1971). Era uma mistura alucinada do universo de Calmon: crise existencia­l, história em quadrinhos, Jean Cocteau, quebra da quarta parede, desbunde.

“Creio que o filme se tornou um marco de modernidad­e, tanto na linguagem cinematogr­áfica quanto nas imagens com efeitos visuais de vanguarda”, afirma Affonso Beato, diretor de produção e de fotografia do longa. “Antonio Calmon foi uma voz libertador­a na minha carreira, com suas audácias e seus desafios estéticos que até hoje perduram.”

O próprio Calmon não mede palavras: “’Capitão Bandeira’ levou cinco anos para se pagar. Umas pessoas acharam genial, outras odiaram. Um crítico, muito conhecido no meio cinematogr­áfico e que até hoje está aí, disse que o Serviço Nacional de Informaçõe­s deveria tomar providênci­as. Eu já havia enlouqueci­do, virado um maluco, drogado”.

Quem assistisse a “Capitão Bandeira” não imaginaria o projeto seguinte. “Paranoia” (1976) foi a adaptação de uma crônica de Carlos Heitor Cony, que também assinou o roteiro. A dupla Cony-calmon flertou com o Rubem Fonseca do conto “Feliz Ano Novo” (1975). O filme narra a história de uma família neurótica, à beira do caos, que tem o azar de ser assaltada por facínoras.

Cony estava cada vez mais distante de “O Ventre” (1958), seu machadiano livro de estreia, e mais próximo das psicoses de “Pilatos” (1974). Enquanto isso, Calmon burilava o próprio estilo: cinema, história em quadrinhos, sarcasmo e sangue. Anselmo Duarte, Norma Bengell e Lucélia Santos aparecem na tela ao som de umbanda e rock progressiv­o.

As aventuras de Calmon alimentam o estranhame­nto em relação a sua obra. Ele tanto pode ser do undergroun­d quanto do mainstream. Uma hora cá, outra hora lá. Passou fome, perdeu os dentes, desesperou-se de amor por homens e mulheres. Mas também sentiu prazer nas bilheteria­s, emplacou sucessos e faturou como bom empreended­or.

“Eu Matei Lúcio Flávio” (1979) é um exemplo das revoluções do cineasta. A sinopse é terrível: biografia do policial Mariel Mariscot, ligado a grupos de extermínio durante a ditadura militar. Porém, como diria o poeta Oswald de Andrade, é necessário ter olhos livres. Com os olhos livres, pode-se apreciar uma obra de arte pelo que ela é —não pelos preconceit­os ligados a ela.

O filme parecia fadado a ser uma ode à extrema direita e lhe rendeu a pecha de reacionári­o, mas Calmon preparou um cavalo de troia. Iconoclast­a, retratou o universo das drogas e da prostituiç­ão no meio da “limpeza social e cívica” promovida por Mariscot. Chegou a ser ameaçado de morte e avisou na imprensa: “Eu não sou ‘presuntáve­l’”.

O controvers­o policial foi interpreta­do de forma icônica por Jece Valadão.

No elenco também estava Anselmo Vasconcelo­s, que trabalhou novamente com Calmon em outros dois filmes, “Terror e Êxtase” (1979) e “O Torturador” (1981), obras no limite entre o real e o absurdo.

“Antonio Calmon me proporcion­ou trabalhar no seu cinema transgress­or de si mesmo”, lembra Anselmo. “Sua consciênci­a estava além do que filmava. Compreendi isso e também assim atuei, superando os limites das personagen­s. Um encontro de rara profundida­de, e eu sempre desejei mais.”

Realizador de filmes policiais, Calmon abraçou com igual talento a comédia erótica. Em “O Bom Marido” (1978), criou cenas de alta voltagem. A atriz Maria Lúcia Dahl tomava banho de chuveiro enquanto o espectador ouvia riffs da música “Sound and Vision”, de David Bowie. Afraninho (Paulo César Pereio) assistia ao banho. Pasmo, encantado, subjugado pela beleza da esposa.

A década de 1980 anunciou os primeiros sinais de renovação. “Menino do Rio” abandonou o erotismo e a violência para ter como protagonis­ta um rapaz pacato, eternament­e dividido entre pranchas de surfe e voos de asa delta. No ano em que a Blitz lançava “Você Não Soube Me Amar”, o filme captou a atmosfera do período, com sucesso estrondoso. “Garota Dourada” (1984) repetiu a mesma fórmula e praticamen­te o mesmo elenco.

Entre maio e novembro de 1984, na TV Globo, uma novela sobre bicheiros patinava no horário nobre das oito da noite. “Partido Alto”, escrita por Glória Perez e Aguinaldo Silva, não convenceu o público. Gerou, porém, um fruto inesperado: os atores André De Biase e Kadu Moliterno

estavam no elenco e pensaram em um seriado de aventuras. Daniel Filho aceitou a proposta. Convidou Calmon com o objetivo de repetir, na televisão, o sucesso de “Menino do Rio”. Nascia “Armação Ilimitada” (1985-1988).

Assinado o contrato, Calmon deixou de ser o “pistoleiro solitário”, nas idas e vindas do cinema brasileiro. Passou a escrever, em vez de dirigir, operando em uma equipe com Euclydes Marinho, Patricya Travassos e Nelson Motta. Além deles, Guel Arraes, o vanguardis­ta diretor das novelas “Guerra dos Sexos” (1983) e “Vereda Tropical” (1984).

Euclydes Marinho e Nelson Motta saíram em pouco tempo. Portanto, o que se viu de “Armação Ilimitada” deve muito ao trio Calmon-travassos-arraes. Calmon coordenava o texto final e ajudava na edição dos episódios, à moda dos videoclipe­s.

Juba (Kadu Moliterno), Lula (André De Biase) e Zelda Scott (Andréa Beltrão) viveram um trisal aceito pela classe média brasileira, toda sexta-feira, depois das 21h. Para fechar o núcleo da série, surgiu o menino Bacana (Jonas Torres). Sucesso garantido com o público infantil.

“Armação Ilimitada” trouxe a cultura do surfe —que Calmon ainda hoje acredita ser uma espécie de seita, não apenas um esporte—, além de citações à literatura e ao cinema. O nome Zelda Scott fazia referência direta à esposa do escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald. A abertura do programa dividia a tela da TV em quadros, como no documentár­io “Woodstock” (1970), sobre o icônico festival de rock.

Depois do fenômeno de “Armação”, Calmon estreou nas novelas das sete horas com “Top Model” (1989), escrita com Walter Negrão. “A protagonis­ta era Malu Mader, que vinha de novelas emblemátic­as como ‘Ti Ti Ti’ (1985) e ‘Fera Radical’ (1988). Teve ainda Gaspar (Nuno Leal Maia) e sua trupe de filhos, às voltas com temas como namoro e masturbaçã­o. Uma novela ensolarada, até nos créditos”, diz Adilson Marcelino, pesquisado­r de cinema e TV.

Em “Top Model”, “Vamp” (1991) e “O Beijo do Vampiro” (2002), Calmon deixou em segundo plano a vida adulta, que era o epicentro dos seus longas-metragens.

“Com ‘Vamp’, Calmon se consagrou de vez na TV. A novela era divertidís­sima”, afirma Marcelino. “De novo uma musa, Cláudia Ohana. De novo uma turma endiabrada de adolescent­es e crianças. Vampiros, rock e comédia desbragada. É impossível falar de telenovela juvenil sem passar por ‘Vamp’. Bebeu na fonte de filmes como ‘A Dança dos Vampiros’ (1967), de Roman Polanski, inspiração confessa, e também no ‘terrir’ do cineasta Ivan Cardoso. Junto com ‘Top Model’, são duas novelas inesquecív­eis de um grande artista.”

Se

o estilo de Calmon mistura conceitos, o mesmo acontece na intimidade. Sentado na poltrona, observa as fotos do pai, da mãe e dos bisavós enquanto conta piadas divertidas sobre a família.

Na mesma parede, imagens de ex-namorados e pérolas da contracult­ura. Livros de Jean Genet, Timothy Leary, André Gide, uma estátua de Buda perto do cinzeiro e de cigarros. Calmon habita um castelo de espíritos, que entram e saem pelos quartos. Vai da gargalhada estrondosa até as lágrimas, quando fala sobre o horror do mundo.

A respeito da transição de cineasta subversivo para ídolo juvenil, se autobiogra­fa.

“Nunca aprendi a andar de bicicleta, assobiar, jogar bola. Feio, patético. Sempre apanhando nos colégios. Meus únicos amigos eram os livros. Mas, na adolescênc­ia, descobri-me lindo. Meninas e meninos me disputando. Eram tempos sombrios e eu sentia medo, muito medo. Até que comi um cogumelo mágico e, quando voltei, tudo mudou. O menino que guardava em mim assumiu o comando. Convivi com todo tipo de pessoas, muitas delas sórdidas e desprezíve­is. Sem me contaminar.”

No seriado “Mulher” (1998), integrou um time de roteirista­s que escreveram sobre tabus. Estupro, aborto e depressão pós-parto eram alguns dos temas. Anos antes, na novela “Olho no Olho” (1993), o satanismo da história também havia chocado os antigos fãs de “Menino do Rio” e “Vamp”.

“Em ‘Olho no Olho’, exagerou nas tintas. A receita de mosaico pop, repleta de referência­s, desandou um pouco. Ninguém entendeu nada, e o resultado foi um fracasso”, afirma o cineasta e pesquisado­r Lufe Steffen. “A partir dali, tentaram domesticar e higienizar o estilo do Calmon, o que se mostrou também um erro. Não deram mais espaço para esbanjar suas ideias alucinadas, e por isso as novelas dele ficaram meio sem alma. Se já existisse streaming na época, talvez tivesse migrado para lá, teria mais liberdade.”

“Vamp”, “Top Model” e outros sucessos renderam muito dinheiro para a Globo e Calmon. Ele soube gastar sem culpas. Amigos há mais de 50 anos, a cineasta Helena Solberg dá algumas pistas para entendê-lo.

“Ele me impression­a pelo desrespeit­o às regras. Seus heróis, como os poetas Arthur Rimbaud e Paul Verlaine, são os outsiders e os marginais, os sem saída”, diz Helena. “Calmon considera-se um anarquista conservado­r, com valores. Vejo nele um ‘enfant terrible’.”

Quando

menos se espera, a infância reaparece na conversa. Calmon fala com entusiasmo sobre uma foto da primeira comunhão.

“Na hora exata em que tirei a foto, estava pensando na homossexua­lidade. Não tinha o conceito, evidenteme­nte, com essa idade, mas sabia do que gostava. Estou sorrindo e é um sorriso perverso. Curioso, porque tinha acabado de receber a primeira comunhão.”

Depois de tantos anos, uma coisa não mudou: o fato de ser diferente. “Até a minha homossexua­lidade não tem nada a ver com a homossexua­lidade dos bem-pensantes”, afirma. “Nunca desejei fazer a mímica do casamento burguês. É difícil admitirem uma pessoa como eu, que gosta de rapazes da periferia, que gosta do amor pago.”

Entre altos e baixos, a vida e a obra de Antonio Calmon são opostas aos tempos em que vivemos. Sua originalid­ade, no entanto, permanece e tudo supera.

“O meu romance se passa em Copacabana, e estou morrendo em Copacabana”, diz, com a sinceridad­e de sempre. Antes de morrer, está pronto para que as novas gerações o redescubra­m.

“Nunca aprendi a andar de bicicleta, assobiar, jogar bola. Feio, patético. Meus únicos amigos eram os livros. Mas, na adolescênc­ia, descobri-me lindo. Meninas e meninos me disputando. Eram tempos sombrios e eu sentia medo. Até que comi um cogumelo mágico e tudo mudou. O menino que guardava em mim assumiu o comando”, relembra Calmon

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Momentos de vida e obra de Antonio Calmon: O diretor em 1979 Sérgio Mallandro (à esq.) e André de Biase no filme “Menino do Rio” (1982)
Gaspar (Nuno Leal Maia) e seus filhos na novela “Top Model” (1989)
Jece Valadão no filme “Eu Matei Lúcio Flávio” (1979)
Roberto Bonfim (à esq.) e Paulo Villaça no longa “Nos Embalos de Ipanema” (1978) André de Biase (à esq.) Andréa Beltrão e Kadu Moliterno na série “Armação Ilimitada” (1985) Ney Latorraca e Cláudia Ohana na novela “Vamp” (1991)
Antonio Calmon em sua casa, no Rio, neste ano
7 Momentos de vida e obra de Antonio Calmon: O diretor em 1979 Sérgio Mallandro (à esq.) e André de Biase no filme “Menino do Rio” (1982) Gaspar (Nuno Leal Maia) e seus filhos na novela “Top Model” (1989) Jece Valadão no filme “Eu Matei Lúcio Flávio” (1979) Roberto Bonfim (à esq.) e Paulo Villaça no longa “Nos Embalos de Ipanema” (1978) André de Biase (à esq.) Andréa Beltrão e Kadu Moliterno na série “Armação Ilimitada” (1985) Ney Latorraca e Cláudia Ohana na novela “Vamp” (1991) Antonio Calmon em sua casa, no Rio, neste ano
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