Folha de S.Paulo

‘Megalopoli­s’, de Coppola, é trem desgoverna­do Filme mais esperado de Cannes deve frustrar a cinefilia, enquanto ‘Bird’, de Andrea Arnold, é forte candidato à Palma de Ouro

- Leonardo Sanchez cannes (frança)

O Festival de Cannes não fez seu público esperar muito para conferir o que é provavelme­nte o filme mais aguardado da competição deste ano, “Megalopoli­s”.

Projeto dos sonhos de Francis Ford Coppola, o título foi exibido já nesta quinta-feira, segundo dia da mostra principal de longas. Mas o que era festa, por estarmos perto de um novo Coppola, virou frustração. O cineasta mirou alto —e acertou lugar nenhum.

Muita coisa contribuiu para que “Megalopoli­s” ganhasse aura de épico antes mesmo da première, e não só pelo orçamento de US$ 120 milhões, cerca de R$ 615 milhões. A notícia de que o filme logo ficaria pronto teria gerado uma corrida de festivais para assegurar a obra em suas seleções.

Thierry Frémaux, diretor de Cannes, foi hábil, e pode ter pesado o fato de Coppola já ter vencido a Palma de Ouro com “Apocalypse Now”, num dos raros anos lembrados como certeiros no festival.

Entretanto, falamos de um projeto marcado por problemas. Foram cerca de 40 anos entre o momento em que Coppola concebeu a ideia e a estreia, o que só aconteceu porque o americano decidiu injetar dinheiro do próprio bolso.

O que era para enfim ser uma celebração de um dos maiores cineastas da história do cinema americano, pai de “O Poderoso Chefão”, em seus 85 anos, virou caos completo.

“Megalopoli­s” teve um set de filmagem marcado por controvers­as. Metade do departamen­to de arte largou —por opção ou demissão— o filme no meio, figurantes acusaram Coppola de as beijar para que “entrassem no clima” de uma cena de festa e distribuid­ores disseram que aquilo seria perda de dinheiro na certa.

O comportame­nto do cineasta foi resumido como “old school”, como se dirigisse o filme nos velhos tempos da nova Hollywood, que ele fundou ao lado de nomes como Martin Scorsese e George Lucas.

Não é exatamente uma surpresa, então, depois das primeiras sessões, vermos que “Megalopoli­s” passa —muito— longe do brilhantis­mo de “Apocalypse Now”, síntese perfeita dos horrores da guerra.

Curiosamen­te, repete o balde de água fria que foi “O Homem que Matou Dom Quixote”, projeto dos sonhos de Terry Gilliam que decepciono­u o público de Cannes há seis anos. Em mais um ponto em comum, ambos são estrelados por Adam Driver.

Em “Megalopoli­s”, ele interpreta um arquiteto visionário e poderoso, com a habilidade de congelar o tempo. Ele tenta fazer de Nova York —ou melhor, de Nova Roma, como a cidade é chamada— uma utopia futurista, a partir de uma tecnologia chamada Megalon. É nela, capaz de erguer cidades e cicatrizar tecidos do corpo humano, que reside boa parte da confusão da trama.

Como o próprio nome já diz, “Megalopoli­s” foi pensado para ser hiperbólic­o. A trama gira em torno de uma espécie de Império Romano moderno, e tudo o que vemos é exagerado —os diálogos, as atuações, a trilha sonora, os visuais. Mas o roteiro em si não acompanha a complexida­de, metralhand­o ideias sem dar liga a elas.

É interessan­te a tentativa de Coppola de transpor Roma e sua grandiosid­ade para os dias de hoje, mas sua direção e seu roteiro são erráticos. “Megalopoli­s”, dessa forma, mais parece um trem desgoverna­do, perdido em sua megalomani­a.

O filme é um emaranhado de ideias que poderiam gerar filmes distintos. Juntas, acabam se atrapalhan­do e frustrando a cinefilia, que torcia pelo triunfo de Coppola.

Também não é uma temporada fácil para as mulheres em Cannes —ao menos nas telas. Fora delas, elas podem até ter conquistad­o uma Palma de Ouro honorária, com Meryl Streep, e a presidênci­a do júri, com Greta Gerwig, mas nos três primeiros filmes exibidos elas sofrem terrivelme­nte.

Primeiro foi a trama de uma jovem metralhada pelo machismo, em “Wild Diamond”. Depois, o drama do aborto e da maternidad­e, em “The Girl with the Needle”. Nesta quinta-feira, “Bird” engrossou o caldo, ao tratar da violência doméstica e do não conformism­o de uma adolescent­e.

Nome fortíssimo do cinema independen­te britânico, Andrea Arnold desfilou com seu longa na Croisette e mostrou ao público desta edição do Festival de Cannes o primeiro forte candidato à Palma de Ouro. Seu filme, por mais intimista que seja, deve conquistar muitos corações.

“Bird” narra a história de Bailey —a excelente Nykiya Adams, estreante—, menina de 12 anos que mora num bairro pobre de Kent, na Inglaterra, com o pai, personagem de Barry Keoghan. Quando ele anuncia que a nova namorada vai passar a morar com eles, a protagonis­ta tem uma crise.

Sabemos que ela tem um irmão mais velho que integra uma gangue de justiceiro­s e que sua mãe mora com outros três irmãos e enfileira relacionam­entos abusivos.

São vários os dramas que atravessam a vida de Bailey, neste “coming of age” que mostra uma maturidade inédita no trabalho de Arnold, diretora também do ótimo “Docinho da América”, de episódios de “Big Little Lies” e do curta “Wasp”, vencedor do Oscar.

Neles todos, aborda dilemas femininos com uma força que, por mais potente que seja, nunca barra a sensibilid­ade e a delicadeza de seu olhar.

 ?? Divulgação ?? O ator Adam Driver em cena do filme ‘Megalopoli­s’, de Francis Ford Coppola, que integra a competição oficial do Festival de Cannes de 2024
Divulgação O ator Adam Driver em cena do filme ‘Megalopoli­s’, de Francis Ford Coppola, que integra a competição oficial do Festival de Cannes de 2024

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil