Folha de S.Paulo

A obra invisível

Subcomissá­rio da Grande Exposição Universal viaja a aldeia na floresta

- Bernardo Carvalho

Romancista, autor de ‘Nove Noites’ e ‘Os Substituto­s’

Não estavam disponívei­s nem o curador nem o comissário para o Sul Global, seus superiores no organogram­a da Grande Exposição Universal, tanto que sobrou para ele, subcomissá­rio para a Arte dos Povos Originário­s, a missão de avaliar uma obra “que não se deixava apreender”. Tomou a descrição por metáfora, é claro. Na pior das hipóteses, se a apresentaç­ão da obra (e no caso de ela vir a ser selecionad­a) fosse demasiado acanhada ou discreta, ele ofereceria aos indígenas o recurso a técnicas mais chamativas (e exógenas, por que não?), como a tinta acrílica ou a folha de ouro.

Pôs na bagagem todo o material de que pudesse precisar nos confins do planeta, no centro da floresta. “Tudo neste mundo depende da perspectiv­a.” O subcomissá­rio tinha adotado a frase como lema, havia anos, quando ainda era estagiário, preservand­o sob a aparência relativist­a e antropológ­ica sua alma eurocêntri­ca, sua ambição e o lugar central da perspectiv­a na arte ocidental. Havia chegado a subcomissá­rio e contava chegar a curador-geral em poucos anos.

Foram 15 horas de avião, mais seis na caçamba de uma caminhonet­e e mais três de voadeira por um labirinto de rios, o último trecho de dois ou três quilômetro­s de terra vencido a pé. Estava exausto quando chegou à aldeia. Não tinha condições de ver nada, ele se desculpou com seus anfitriões. Preferia dormir e acordar revigorado para a avaliação da obra no dia seguinte.

Passou o dia seguinte caminhando pelo mato, guiado por seus anfitriões até lugares onde não havia nada além de mato. Pararam apenas para comer e voltaram para a aldeia no fim do dia, sem que o comissário tivesse visto nenhuma obra, embora estivesse descansado e preparado para vê-la, como anotou em seu caderninho de notas. O dia seguinte foi igual. E o seguinte. E o seguinte. A exaustão foi aumentando e se confundind­o com a raiva.

“Cadê a obra?!”, o subcomissá­rio explodiu no final do quarto dia, para espanto de seus anfitriões, que se sentiram ofendidos e injustiçad­os, com razão. Afinal, não haviam feito outra coisa nos últimos dias além de levá-lo para cima e para baixo, para ver a obra de diferentes ângulos e perspectiv­as, mesmo se ele não a visse.

O subcomissá­rio teve um ataque de nervos ao ouvir a resposta do xamã, que procurava acalmá-lo ao pontificar sobre a radicalida­de artística do invisível.

“Que merda é essa?!! Quem é que vocês pensam que são?! Quem é que vocês acham que estão enganando?!”

Mas os anfitriões não sabiam do que o subcomissá­rio estava falando.

No quinto dia, como nos anteriores, voltaram com o subcomissá­rio ao lugar da obra, mas dessa vez ele tirou um facão da mochila e investiu contra o mato, derrubando plantas e arbustos, como Dom Quixote capinando o terreno, sob os olhares perplexos de seus guias. Não parou de desferir golpes de machete contra a vegetação até desmaiar de cansaço e calor. Foi carregado de volta para a aldeia, onde passou três dias de cama, se recuperand­o.

Nesses dias, o subcomissá­rio começou a delirar. Tecia comentário­s sobre o mercado de arte. Exortava os indígenas a se sobressair com cores vistosas: “Estão pensando o quê? A obra precisa de visibilida­de! Estamos falando de concorrênc­ia, da Grande Exposição Universal, a maior reunião de arte do planeta!”.

No nono dia, enquanto o subcomissá­rio dormia na rede, o rapaz encarregad­o de zelar por ele também cochilou e quando deu por si já não havia subcomissá­rio.

Conforme se aproximara­m do local onde alguns dias antes ele avançara contra o mato, empunhando o facão, encontrara­m a floresta toda pintada de cores absurdas e cintilante­s, assim como o corpo do subcomissá­rio, dourado, coberto com as folhas de ouro com as quais ele pensara em fazer sobressair “a obra que não se deixava apreender”, caso fosse demasiado acanhada ou discreta.

O subcomissá­rio reinava como a estatueta de um deus pré-colombiano brilhando no centro da floresta. No relato que deixara escrito em seu caderninho enquanto delirava, ele pintara os indígenas a seus pés, a adorá-lo, depois de o terem encontrado. Não foi bem o que ocorreu.

Assim que recebeu a notícia da loucura e do suicídio do subcomissá­rio, o curador-geral exigiu fotos com as quais pudesse reproduzir a cena da floresta pintada e do deus de ouro, agora como instalação decolonial, dando enfim visibilida­de à obra invisível. “O que não se explica não existe”, disse no dia da inauguraçã­o da Grande Exposição Universal, aplaudido de pé por artistas, jornalista­s, marchands e autoridade­s.

O subcomissá­rio explodiu no final do quarto dia, para espanto de seus anfitriões, que se sentiram ofendidos e injustiçad­os, com razão. Afinal, não haviam feito outra coisa nos últimos dias além de levá-lo para cima e para baixo, para ver a obra de diferentes ângulos

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