Folha de S.Paulo

Em tradução livre

- Ruy Castro

Norma recente na imprensa decretou que, diante de um título de livro ou filme inédito ou de uma expressão em língua estrangeir­a, informe-se entre parênteses o significad­o em português com a ressalva “em tradução livre” —ou seja, informal, aproximada. Sou a favor da tradução, evidente. Mas por que “livre”? Já vi uma referência ao romance “Moby Dick”, seguida de “em tradução livre, ‘Moby Dick’”. E vi também “I love you” se tornar, “em tradução livre”, “Eu te amo”, e “To be or not to be”, “Ser ou não ser”. Onde está a liberdade?

Imagine agora o contrário: um jornalista americano traduzindo para o inglês certas palavras e frases peculiares em português. Como não tem a vivência da língua, não poderá fazer uma “tradução livre” e, por falta de dicionário, recorrerá ao grande idiota da objetivida­de: o tradutor do Google.

Um livro de Millôr Fernandes, “The Cow Went to the Swamp” (“A Vaca Foi pro Brejo”), de 1989, já antecipava o que seria quando isso acontecess­e. Alguns exemplos: “É um barato!” (“It’s a male cockroach!”), “Comigo não, violão!” (“Not with me, guitar!), “Uma tremenda mão na roda” (A trembling hand in the wheel”), “Se der bolo, eu tiro o corpo fora” (“If it gives cake, I take my body out”). E “bombom” será “goodgood”,

Velha história conta que, em visita ao Brasil em 1947, o presidente americano Harry Truman dirigiu-se ao presidente brasileiro Eurico Gaspar Dutra: “How do you do, Mr. Dutra?”. E Dutra: “How tru you tru, Mr. Truman?”. Conta-se também que, ao baterem à porta durante o encontro entre eles, Dutra, certo de que seria alguém da comitiva americana, gritou: “Between!” (“Entre!”).

Pensando bem, boa mesmo é a tradução livre. Se bem feita, é mais flexível. Numa coluna recente, citei o famoso verso de T.S. Eliot, “April is the cruellest of months”. Uma tradução verdadeira­mente livre seria: “Junho é o mais cruel dos meses.”

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