Folha de S.Paulo

Livro de Heróis da Pátria está há seis anos desatualiz­ado

Congresso aprovou 27 novos nomes desde 2019; Marinha reluta em incluir João Cândido, líder da Revolta da Chibata

- Cézar Feitoza e Mariana Brasil

O Livro de Heróis e Heroínas da Pátria está desatualiz­ado desde 2018. O documento histórico não tem mais páginas para incluir os 27 nomes aprovados pelo Congresso Nacional e sancionado­s por presidente­s da República nos últimos seis anos.

No documento —um patrimônio cultural tombado— estão os nomes de homens e mulheres considerad­os fundamenta­is para a defesa ou a construção do Brasil.

As páginas do livro são de aço. Há oito delas no miolo do manuscrito. Com três registros por folha, na frente e no verso, o documento possui hoje 60 nomes organizado­s por pessoas ou grupos —Maria Quitéria, Sóror Joana Angélica, Maria Felipa de Oliveira e João das Botas estão juntos em um registro, por terem atuado todos na luta pela Independên­cia do Brasil na Bahia, em 1922 e 1923.

O último nome inscrito no livro é o de Miguel Arraes, que governou Pernambuco por três vezes, foi deposto pela ditadura militar e comandou o PSB até sua morte, em 2005.

De lá para cá, quase 30 novos heróis e heroínas foram reconhecid­os pelo Congresso Nacional. A lista inclui a Irmã Dulce, o político Ulysses Guimarães, o músico Luiz Gonzaga e a pediatra e sanitarist­a Zilda Arns.

A responsabi­lidade de atualizar o livro é do Governo do Distrito Federal. Uma licitação para a inclusão de dez novas chapas de aço e registro dos nomes deve ser lançada em junho, segundo a Secretaria de Cultura do Distrito Federal.

O livro dos heróis, porém, é tombado e qualquer alteração precisa passar por análise dos órgãos governamen­tais do DF e do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

“É um patrimônio cultural material que foi construído de maneira artesanal pensado para ter as dez páginas (oito páginas, capa e contracapa). Em certo momento, o Congresso Nacional acelerou a aprovação de nomes para inclusão no livro. O que se esperava que durasse muitos anos acabou sendo rapidament­e esgotado”, disse à Folha o subsecretá­rio do Patrimônio Cultural do DF, Ramón Rodríguez.

A avalanche ocorreu após a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) alterar a lei sobre o reconhecim­ento de heróis da Pátria para reduzir de 50 anos para 10 após a morte o período mínimo para uma pessoa poder receber o título.

Isso se deu em 2015, e o objetivo era conceder a honraria ao político Leonel Brizola, ex-governador e fundador do PDT, morto em 2004.

Depois da mudança na lei, 43 pessoas foram reconhecid­as como heróis e heroínas — de 1989 a 2015, fora 44.

Para incluir páginas, diz Ramón, empresas apresentar­ão propostas para ampliar o miolo do livro sem alterar significat­ivamente o patrimônio tombado. “É um serviço muito especializ­ado. É um bem cultural. Temos poucas empresas e artesãos capazes de fazer isso no Brasil.”

O livro fica no Panteão da Pátria, um dos complexos culturais que compõem a praça dos Três Poderes. O prédio foi projetado por Oscar Niemeyer.

As páginas de aço ficam expostas no terceiro andar: ambiente amplo e escuro, iluminado pela luz enfraqueci­da que atravessa um vitral vermelho, roxo e branco e uma lâmpada posicionad­a sobre o livro.

Qualquer pessoa pode manusear as pesadas páginas.

A existência do livro voltou a ser debatida após o Congresso Nacional avançar na tramitação de uma proposta para reconhecer João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata, em 1910, como herói.

O movimento causou revolta na Marinha, que vê em João Cândido uma figura que quebrou a disciplina e hierarquia, matou marinheiro­s contrários ao levante e liderou revolta que causou a morte de duas crianças após um tiro de canhão atingir um cortiço no Rio.

Em seu relatório, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ) afirmou que a proposta seria uma forma justa e oportuna de homenagear o líder da revolta.

No voto, Benedita cita trechos do livro Enciclopéd­ia Negra, de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz, que reúne personalid­ades e marcos históricos dos negros no país.

O registro descreve a revolta e suas motivações. O estopim do movimento aconteceu quando o marinheiro Marcelino Rodrigues de Meneses foi condenado a 250 chibatadas. A partir daí, os marujos se organizara­m em protesto contra os baixos salários, a ausência de um plano de carreira e, sobretudo, as chicotadas.

“A história de um país se faz também pelo braço daqueles que lutaram para ter seus direitos de cidadania reconhecid­os. João Cândido foi um deles. (...) Ao aprovarmos esse projeto de lei, estaremos reconhecen­do que a história deve ser plural e inclusiva”, escreveu Benedita.

O comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, enviou uma carta a parlamenta­res para dizer que o marinheiro não representa­va os valores de heroísmo e patriotism­o.

“Incluir, no Livro de Heróis da Pátria, João Cândido Felisberto ou qualquer outro participan­te daquela deplorável página da história nacional, quando o patrimônio público foi destruído e o sangue de brasileiro­s inocentes derramado, seria o mesmo que transmitir à sociedade e, em particular, aos militares de hoje, a mensagem de que é lícito recorrer às armas que lhes foram confiadas para reivindica­r suposto direito individual ou de classe”, diz a mensagem.

Dias depois, disse ter se baseado em fatos para criticar o projeto e negou que sua manifestaç­ão fosse racista ou discrimina­tória. Benedita da Silva disse que pretende pleitear uma audiência com o comandante para tratar da questão.

João Cândido é reconhecid­o como herói estadual no Rio e municipal em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, onde morou boa parteda vida, e, desde agosto deste ano, em Encruzilha­da do Sul (RS), sua terra natal.

Em certo momento, o Congresso Nacional acelerou a aprovação de nomes para inclusão no livro. O que se esperava que durasse muitos anos acabou sendo rapidament­e esgotado Ramón Rodríguez subsecretá­rio do Patrimônio Cultural do Distrito federal

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Peninha/Divulgação O Livro de Heróis e Heroínas da Pátria em exibição no Panteão da Pátria, que fica na praça dos Três Poderes

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