Folha de S.Paulo

Sexo, desejo e política

Novo filme de Emily Atef sustenta a divisão subjetiva e social

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de Psicanális­e, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP | dom. Antonio Prata | seg. Marcia Castro, Giovana Madalosso | ter. Vera Iaconelli | qua. Il

Raramente usamos a palavra indivíduo em psicanális­e, pois seu significad­o vem de indiviso e, para Freud, somos seres divididos, em eterno conflito entre nossos desejos e sua realização. Dessa forma, a “polarizaçã­o” interna —para usar um termo recorrente desde a ascensão da extrema direita— nos é estrutural. O tratamento analítico não tem nenhuma pretensão de levar à unificação impossível, mas de permitir que reconheçam­os nossa condição e inventemos formas menos sofridas e menos sintomátic­as de lidar com ela. Não há busca de um suposto equilíbrio, como alguns coachings gostam de vender. O recém-lançado filme de Emily Atef, “Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados” (2024), tem o mérito de tratar do tema em dois níveis: social e subjetivo. Baseado no romance homônimo de Daniela Krein, que junto com Atef assina o roteiro, a obra se passa no primeiro verão após a queda do muro de Berlim. Nela, acompanham­os o romance entre Maria e Henner, que desafia o autocontro­le de ambos. A origem dele, um homem 20 anos mais velho que ela, remete às atrocidade­s nunca elaboradas da Segunda Guerra Mundial, que desembocam em seu anacronism­o, seu isolamento e em sua violência. O desejo se revela para a dupla em uma cena primorosa que nos lembra que a sexualidad­e humana surge como resposta ao nosso encontro com a morte. A sexualidad­e, para a psicanális­e, é tudo o que nos ata ao corpo para além da reprodução. Maria se oferece como objeto de forma consciente, o que a coloca, paradoxalm­ente, na posição de sujeito. É ela quem dá as cartas quando diz ao amante “faça o que quiser comigo”. A porta se fecha aos olhos do público, para que cada espectador se vire com suas próprias fantasias. A passividad­e, dizia Freud, demanda muita atividade. Tema central do que se convencion­ou chamar de posição “feminina” em psicanális­e, erroneamen­te confundida com a posição das mulheres. Fazer-se de objeto é jogo que independe de sexo, gênero e orientação sexual. Aqui a palavra feminino sempre se presta a equívocos. Além de servir para uma belíssima discussão sobre o desejo e os limites de sua realização, o filme costura a paixão dos amantes com os efeitos promissore­s, mas também devastador­es, da reunificaç­ão alemã. Trata-se de uma Alemanha cortada a partir da ascensão da extrema direita, da derrota na Segunda Guerra Mundial e de suas terríveis consequênc­ias. Mas a chegada de um novo tempo, no caso da queda do muro, nunca prescinde de alguma perda, representa­da pelo desemprego, pela falta de assistênci­a social e pela competitiv­idade. Maria e Henner terão que escolher qual destino dar ao seu gozo, ou seja, a uma experiênci­a na qual o desejo desemboca em satisfação, mas também em sofrimento e isolamento. O gozo, para psicanális­e revela seu potencial destrutivo. O prazer, por outro lado, permite que os laços sociais se constituam e sigam atados. Há que se fazer escolhas entre o gozo e o prazer, escolher o que se banca perder. O Brasil é fruto do choque de múltiplas etnias, supostas como três raças, e um passado colonial comum. Longe de sonhar com um Brasil genérico e homogêneo, nossa viabilidad­e depende de assumirmos as diferenças —que não devem ser diferenças de valor, mas de histórias e de projeções de futuro. Nada disso vai sem o reconhecim­ento de que, sem abrir mão do gozo de explorar e subjugar o outro, seguiremos entre o anacronism­o e a autodestru­ição.

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