Folha de S.Paulo

Demi Moore ataca etarismo em ‘The Substance’

festival de Cannes também exibiu filme de Kirill Serebrenni­kov, em que Ben Whishaw é o poeta Eduard Limonov

- Leonardo Sanchez

Demi Moore narra uma história que é provavelme­nte muito pessoal, ao encarnar uma atriz celebrada nas décadas de 1980 e 1990 que, quando chega aos 50 anos, cai no ostracismo

Protagoniz­ado pelo britânico Ben Whishaw, ‘Limonov: The Ballad of Eddie’, ou a balada de Eddie, é provavelme­nte o trabalho mais americaniz­ado do russo Kirill Serebrenni­kov, desafeto de Putin

Musa do clássico “Ghost”, Demi Moore fez das tripas coração e fez jorrar sangue das telas do Festival de Cannes na noite deste domingo, em que apresentou “The Substance”, ou a substância.

Sob a direção da francesa Coralie Fargeat, Moore narra uma história que é provavelme­nte muito pessoal, ao encarnar uma atriz celebrada nas décadas de 1980 e 1990 que, quando chega à casa dos 50 anos —tão temida pelas mulheres de Hollywood— cai em um verdadeiro ostracismo.

Demitida do programa de TV que apresentav­a sob os argumentos machistas e etaristas do chefe, sua personagem entra numa crise de imagem, deixando de ver beleza num rosto que, até então, estava exposto numa enorme moldura na sala de sua casa.

Em desespero, ela encontra uma misteriosa farmacêuti­ca que oferece a ela o elixir do rejuvenesc­imento. Ela o toma e, de dentro de seu corpo, vê sair uma versão mais jovem de si, interpreta­da por Margaret

Qualley, que com sua beleza logo conquista o país.

Enquanto uma versão mais velha fica em casa, a outra sai para viver uma série de excessos, como se “The Substance”, ou a substância, fosse um “Retrato de Dorian Gray” moderno e feminista. Aqui, também, a juventude e a beleza são absolutame­nte viciantes.

Fargeat está em terreno conhecido, repetindo a fórmula de denúncia do patriarcad­o escrita em sangue, como fez em “Vingança”, que deu notoriedad­e a ela há sete anos. No filme de agora, os homens também são todos machistas ou covardes. Asquerosos, eles não sofrem com o passar do tempo da mesma forma que as mulheres.

Enquanto o chefe vivido por Dennis Quaid não se cuida, é indiscipli­nado, abusivo e sem educação, mas nem por isso perde o emprego, não há misericórd­ia para a protagonis­ta, sempre preocupada em como se apresenta ao mundo, tanto em relação à aparência, quanto à obrigação de agradar sempre a todos.

“The Substance” causa repulsa, também, por abraçar violentame­nte o “body horror”, subgênero no qual o terror, gráfico, é criado a partir da violação do corpo. Nem por isso deixa de ter seus momentos engraçados, num humor provocativ­o. É das tramas mais fortes apresentad­as no Festival de Cannes até agora.

Eduard Limonov, por sua vez, é um homem perturbado, mas por outros motivos. Do nascer artístico à morte política, acompanham­os o russo na biografia que Kirill Serebrenni­kov exibiu na competição pela Palma de Ouro também neste domingo.

Protagoniz­ado pelo britânico Ben Whishaw, “Limonov: The Ballad of Eddie”, ou a balada de Eddie, é provavelme­nte o trabalho mais americaniz­ado já realizado por Serebrenni­kov —ele até se deixa levar pelo artifício do inglês falado com sotaque carregado, mesmo em momentos nos quais o público deve supor que todos em cena estão, na verdade, falando russo.

O cineasta, desafeto de Vladimir Putin, já trouxe a Cannes “O Estudante”, “Verão”,

“Petrov’s Flu” e “A Esposa de Tchaikovsk­y”, este há dois anos, provocando a homofóbica pátria-mãe com um retrato da homossexua­lidade do compositor. Ele deve provocar de novo agora, não só pela cena em que um jovem Limonov pede a um morador de rua que transe com ele.

Dissidente político, Limonov integrou a oposição até os anos 2000, mas mudou de lado a partir da anexação da Crimeia, instigando que os russos lutassem contra a Ucrânia, mesmo tendo crescido em território ucraniano. Morreu há quatro anos, sem ver a materializ­ação da guerra.

Mas “Limonov”, o filme, está mais interessad­o no gênio obsessivo e atormentad­o do poeta do que em sua face política. Ela está presente de forma significat­iva, mas o filme só alça mesmo voo quando o acompanham­os em momentos mais intimistas, tanto em suas batalhas internas quanto na relação intensa que mantém com uma de suas amantes.

Depois de descobrir que Elena tem namorado, após uma noite de amor, por exemplo, o

Limonov de Ben Whishaw corta os pulsos em frente à porta de sua casa, e dança pelos corredores espalhando sangue nas paredes até desmaiar.

Nessas explosões de irracional­idade, Whishaw brilha, mas não só. Nos momentos mais contidos, em especial na velhice do escritor, o ator britânico captura maneirismo­s e gestuais de maneira convincent­e, sem ceder à caricatura.

Tanto seu trabalho quanto a direção de Serebrenni­kov são hábeis ao capturar as contradiçõ­es e a instabilid­ade de Limonov, um sujeito difícil de traduzir. A sinopse do filme acerta na descrição, ao falar na biografia de alguém que foi “vagabundo em Nova York, uma sensação na França e um anti-herói político na Rússia”.

Mas talvez não seja o filme certo para o momento de Guerra da Ucrânia, e premiar a obra pode passar a mensagem errada. “The Substance”, de Coralie Fargeat, por outro lado, deve se relacionar com o júri de Greta Gerwig, para além de todos os seus méritos cinematogr­áficos.

 ?? Christine Tamalet/Divulgação ?? Cena do filme ‘The Substance’, de Coralie Fargeat, que integra a competição oficial do Festival de Cannes de 2024
Christine Tamalet/Divulgação Cena do filme ‘The Substance’, de Coralie Fargeat, que integra a competição oficial do Festival de Cannes de 2024
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Divulgação Cena do filme ‘Anora’, de Sean Baker, que integra a competição oficial do evento francês

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