Folha de S.Paulo

Propaganda contra liberdade política contamina democracia­s

Estratégia não é monopólio de ditaduras; nesse cenário, países ocidentais estão levando uma surra

- Lúcia Guimarães É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspond­ente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo | dom. Sylvia Colombo | ter. Mundo Leu | qui. Lúcia Guimarães | sáb. Ig

Há romances que se tornam best-sellers porque são leitura fácil. Ou porque tocam num tema popular. Mas, durante décadas, milhões de leitores do denso “Doutor Jivago” não sabiam que o romance do russo Boris Pasternak valeu ao autor um prêmio Nobel com ajuda da CIA.

Isso mesmo: a agência americana de inteligênc­ia aceitou uma sugestão de parceiros do serviço de espionagem britânico e distribuiu clandestin­amente o original em russo na União Soviética, onde a obra fora banida pelo governo de Nikita Kruschev. O lançamento, passado de mão em mão, foi um sucesso.

“Doutor Jivago” é uma história de amor e um épico que cobre anos de convulsão antes e depois da Revolução Bolcheviqu­e de 1917. No começo de 1958, a CIA afirmou, num memorando, que se tratava de uma obra de grande valor para propaganda, por sua “natureza provocador­a” e pela chance de estimular soviéticos a indagar “o que está errado no governo deles.”

Propaganda de regimes não é monopólio de ditaduras, mas o final da Guerra Fria criou uma nova modalidade de propaganda de “economia mista”. Ela parte de autocracia­s e emprega cleptocrat­as não identifica­dos por ideologia. Nesse cenário, as democracia­s ocidentais estão levando uma surra. Sai em julho nos Estados Unidos “Autocracy, Inc.” da historiado­ra Anne Applebaum, que torço para ser logo traduzido no Brasil. É leitura para qualquer interessad­o no destino da liberdade política, mas seria especialme­nte útil para quem papagaia propaganda russa nos corredores de palácios em Brasília.

Na segunda metade do século 20, o esforço de ditaduras como a China ou a União Soviética era concentrad­o em censurar informação, convencer a população de que seus regimes eram ilhas de ordem e estabilida­de.

Neste milênio, a ofensiva se voltou para fora, e o objetivo é convencer cidadãos livres de que a democracia é o inimigo. Está dando tão certo que Mike Turner, o deputado republican­o líder do Comitê de Inteligênc­ia da Câmara jogou a toalha em abril: admitiu que seus colegas de partido repetem recados de Vladimir Putin no Congresso.

Como explicar que políticos criados sob o forte anticomuni­smo da Guerra Fria, acocorados sob mesas escolares em simulações de um ataque nuclear, derretem-se diante de um ex-agente da KGB, um assassino em massa que, nesta semana mudou duas fronteiras marítimas com a Lituânia e a Finlândia?

O livro de Applebaum, ganhadora de um prêmio Pulitzer, explica como o ditador contemporâ­neo trocou a ideologia e a solidão no topo por uma sofisticad­a rede transnacio­nal, seja da China, da Rússia ou do Irã, com criminosos financeiro­s, especialis­tas em tecnologia e propaganda. A autora detalha operações que contaminam as mídias na Ásia, na África e na América Latina. Um exemplo é a “agência de notícias” Pressenza, fundada em Milão e transferid­a para o Equador, em 2014, que publica, em oito línguas, conteúdo “voltado para a paz”, com financiame­nto do Kremlin via empresas privadas.

A ilusão do apreço global pela democracia, depois da queda do Muro de Berlim e, em seguida, o terrorismo de inspiração islâmica deixaram governos democrátic­os desprepara­dos para resistir à sabotagem que tem seus cidadãos como cúmplices. Não vai vir do Estado o combate legítimo e eficaz a esta ameaça. Quem dorme com a porta de casa aberta não pode cobrar proteção contra assalto.

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