Série sobre Kevin Spacey é um desserviço e sequência de imagens sensacionalistas
STREAMING Kevin Spacey: A História Não Contada ★ ★★★★ Reino Unido, 2024. Dir.: Katherine Haywood. 14 anos. Disponível no Max
Não há nada de errado, em princípio, em fazer um documentário de acusação. No entanto, se ele não for bem pensado, pode virar um testemunho de defesa involuntário.
É o que ocorre na série “Kevin Spacey: A História Não Contada”, de Katherine Haywood, que parece encomendada para pôr a causa contra o assédio sexual no ridículo.
Esta crítica não contempla os aspectos jurídicos do caso, se foi justo ou não o julgamento que inocentou o ator. É uma análise da série e de como incide num julgamento superficial das atitudes de Spacey.
O problema é o que determina sua estrutura, baseada no depoimento de atores que tiveram contato com o astro no início de suas carreiras e sofreram assédio, mas não foram ouvidos no julgamento.
A série contempla o medo do que aconteceria a eles se abrissem a boca. Poderiam ter saído da sombra quando fariam alguma diferença, não para um documentário que transpira sensacionalismo.
Os assédios remontam ao início da carreira de Spacey. O mais antigo dos entrevistados até imagina que ele deve ter ficado bem pior, se antes de ganhar poder já era assediador. A série mostra que sim.
Os assédios passam pelo elenco e estudantes do teatro londrino The Old Vic, que Spacey dirigiu a partir de 2003, e pelo elenco da série “House of Cards”, onde o ator era majestade de 2013 a 2017.
É compreensível o medo. Mas o filme procura exacerbar isso com uma trilha sonora calcada em obviedades, subindo o tom nos momentos em que deseja nos sensibilizar.
Vejamos o caso do ator Scott Levy, um dos entrevistados. Em certo momento, ele se levanta, pois aparentemente houve um corte e ele poderia respirar. Mas esse corte não ocorreu, então o vemos se afastando, praguejando como se revivesse um trauma. É meio constrangedor ver um homem tão forte, que já havia sido fuzileiro naval, tratado como uma vítima indefesa.
Ele foi uma vítima, mas jamais indefesa. Era necessário bom senso para deixar isso claro e não jogar no ralo o trabalho sério de organizações como o Metoo, entre outras, que trabalham prioritariamente com vítimas inferiorizadas nas relações de poder.
O ator teve uma atuação convincente, não uma reação convincente. Essa atuação transforma momentaneamente a série num falso documentário. “Eu não quero que isso seja uma coisa de vítima”, o ator afirma, supostamente sem saber que essa fala entraria no filme. Se ele não sabia, o filme o manipulou. Se ele sabia, aceitou a farsa e ajudou a manipular o público.
Em outra cena, vemos um ator apresentado como Daniel, que participou de “House of Cards”. Ele recebe a visita de uma companheira de elenco e, quando conta para ela que foi apalpado, ela se escandaliza, e então ele pede que ela se levante, sugerindo que iria mostrar como foi o assédio.
Como assim? A atriz logo se esquiva e pergunta se foi por trás ou pela frente a apalpada. Detalhes assim revelam a índole dos acusadores, não muito melhor que a do acusado.
Segundo a série, não haveria problema em reproduzir o que sofreu para uma câmera. Isso dá uma medida de que a série e ao menos esse entrevistado não são muito confiáveis.
Ao se preocupar demais em mostrar o astro com seus fantasmas, o pai nazista e o diabo a quatro, a obra parece até um testemunho de defesa do réu, mais do que uma nova plataforma para prolongar seu cancelamento na indústria.
Como documentário, é quadrado ao extremo. Como veículo de acusação, é pior, pois assume a manipulação e a falta de ética. É o tipo de produto audiovisual que presta um desserviço à luta contra o assédio nos ambientes de trabalho.