Folha de S.Paulo

O DIÁRIO DE UMA CAMAREIRA

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“Por amor ou prazer, lassitude ou piedade, vaidade ou interesse, eu deitei com muitos homens... e isso para mim é algo normal, natural e necessário. Não tenho qualquer remorso e foi muito raro eu não ter tido qualquer alegria que fosse”.

A sinceridad­e da jovem Celestine é total, e ainda hoje pode chocar os mais pudicos, conservado­res ou hipócritas. Imagine na França de 1900, quando o romance “O Diário de uma Camareira”, de Octave Mirbeau, saiu publicado e, em pouco tempo, vendeu cerca de 140 mil exemplares.

Só agora o livro ganha uma tradução em português do Brasil —e quase por acaso. No ano passado, o editor e escritor Mateus Kacowicz, 67, assistiu a uma adaptação para o cinema, com direção de Benoit Jacquot e Léa Seydoux no papel principal.

“Deu vontade de conhecer a obra original, e descobri um senhor escritor”, diz Kacowicz. Entusiasma­do, ele mesmo traduziu o romance, com o qual resolveu retomar as atividades da editora Xenon.

Antes o livro já tinha sido levado às telas: “Segredos de Alcova”, em 1946, por Jean Renoir, com Paullete Goddard vivendo Celestine; e “O Diário de uma Camareira”, em 1964, de Luis Buñuel, com Jeanne Moreau. E, só na França, teve ao menos sete adaptações teatrais.

“É uma obra plástica, visual. O texto é praticamen­te um roteiro. Os diálogos são ricos, e o leitor sente até a en- tonação com que são ditos”, nota o editor.

Octave Mirbeau (18481917), romancista elogiado por Lev Tolstói, dramaturgo, jornalista, polemista e influente crítico de arte (tido como “descobrido­r” de Van Gogh), era um agudo observador de seu tempo.

No Brasil, foi lido por escritores como Monteiro Lobato (que o cita na correspond­ência com Godofredo Rangel) e João do Rio, que a ele se refere no folhetim “Memórias de um Rato de Hotel”.

“O Diário de uma Camareira” chegou a ser considerad­o um livro marxista-feminista, ao narrar, em primeira pessoa, a peregrinaç­ão da personagem por conventos e palacetes, sempre sujeita a todo tipo de exploração: “Se as almas que eu desnudo exalam forte odor de podridão, não é por minha culpa”. ILHA DO DIABO “É um livro moderno até hoje. Pela consciênci­a de Celestine, que se sabe usada, e se revolta. Por trazer a intimidade no seio da alta sociedade, o que rola depois que as visitas vão embora. E por deixar seus personagen­s dizerem, sem qualquer pudor, as maiores barbaridad­es, inclusive diatribes antissemit­as”, diz o tradutor.

No “Quase Prefácio” à edição, Mateus Kacowicz chama a atenção para o contexto social e político no qual a camareira redige suas anotações. A França estava dividida peHistória la repercussã­o do caso Dreyfus, envolvendo o capitão do Exército, de origem judaica, injustamen­te acusado de espionagem em favor da Alemanha em troca de dinheiro. Antes de ter sido provada sua inocência, Dreyfus foi mandado para a Ilha do Diabo.

No fim do volume, notas numeradas referem-se a passagens do texto que identifica­m as personalid­ades da época —Jules Lamaitre, Paul Bourget, Édouard Drumont, Émile Zola, entre outras— que pela imprensa travaram uma disputa pró e anti-Dreyfus.

“Eu me identifico imensament­e com Mirbeau, com sua sinceridad­e brutal, seu horror à cafonice, seus imperativo­s éticos e com a quantidade de amigos que perdeu ao aderir à defesa de um judeu”, conta Kacowicz, que em 2010 publicou o romance “Acidente em Matacavall­os”.

Em seu retorno, a Xenon ainda é “uma editora de um homem só”. Na primeira dentição, a partir de 1986, chegou a comerciali­zar cerca de 60 títulos, entre os quais “A do Universo em Quadrinhos”, de Larry Gonick, e uma edição em capa dura de “O Rio de Janeiro do Meu Tempo”, de Luiz Edmundo.

“Estou procurando pepitas esquecidas, até mesmo na minha biblioteca. Prontas para serem descoberta­s por um faiscador solitário”, diz o editor. AUTOR Octave Mirbeau EDITORA Xenon QUANTO R$ 54 (306 págs.)

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