Folha de S.Paulo

Podólatras da letra

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

MEU INTERLOCUT­OR, uma pessoa inteligent­e e bem informada, quer saber minha opinião sobre “gol de bola parada”. A princípio não entendo se ele está falando de língua ou futebol. Quando enfim entendo, fico mais confuso ainda.

“Se a bola está parada, como pode ser gol? Não existe gol sem movimento, existe? A bola tem que cruzar a linha!”, exulta ele. Está convicto de que seus argumentos provam por 7 a 1 que “gol de bola parada” é uma locução absurda, desprovida de lógica, embora jornalista­s esportivos a repitam o tempo todo.

No início penso que meu interlocut­or quer fazer graça. Demoro um pouco a me dar conta de que estou —mais uma vez— diante de um podólatra da letra.

A quem não foi alfabetiza­do em futebolês convém explicar que “gol de bola parada” é aquele marcado como resultado imediato da cobrança de uma falta ou escanteio. Nesses momentos a bola está de fato parada, dando tempo aos dois times para distribuir em campo suas peças de ataque e defesa.

Desnecessá­rio dizer que, no próprio ato da cobrança da falta ou escanteio, a bola será posta em movimento outra vez, certo? “Gol de bola parada” é, portanto, uma expressão condensada e elíptica que poderíamos desdobrar assim: “gol (surgido de uma jogada) de bola parada”.

Não há nada errado nisso. Em primeiro lugar, está por nascer um torcedor que deixe de entender a locução “gol de bola parada”. Em segundo, a economia verbal é um dos valores fundamenta­is em ação no movimento histórico das línguas.

Ou Vossa Mercê —digo, vosmecê, ou melhor, você— não sabe que aquilo que pode ser dito com menos palavras e sílabas quase sempre será?

Na verdade, o único erro dessa história está na formatação literal demais da cabeça do meu interlocut­or, que mesmo sendo inteligent­e e bem informado (nenhuma ironia nisso) sucumbiu à podolatria da letra, isto é, à tara no pé da letra. Tem vasta companhia.

Para provar que é uma furada o apego excessivo ao sentido mais literal, denotativo e chão das palavras, bastaria dizer que nem a expressão metafórica “pé da letra” pode ser tomada ao pé da letra. Desde quando letra tem pé?

Difícil dizer se a internet fez brotar uma aguerrida geração de podólatras ou se apenas deu voz a tarados do literalism­o que sempre estiveram lá, à espera de uma oportunida­de. O fato é que eles têm provocado um número inédito de marolas na superfície das discussões sobre a língua.

A tentativa de substituir a correta expressão “risco de vida” pela biônica “risco de morte” é a mais vistosa de suas obras. A implicânci­a com a dupla negação, um traço histórico do português, também comove muita gente: “Arrá! Quem não faz nada faz alguma coisa!”

Outras pérolas de seu repertório: “Não tire a pressão do paciente, porque sem pressão ele morre”; “Entendo você se irritar com o mau atendiment­o, mas se pagar geral vai ficar sem dinheiro”; “O que vem ‘antes de mais nada’ vem por último”; “Engenheiro elétrico dá choque”. O et cetera é gigante.

Além de ser uma perda de tempo —para eles e para todo mundo—, o empenho dos podólatras em corrigir o que não está errado deixa a língua cinzenta e inóspita, com um ventinho gelado soprando nas ruas desertas. Felizmente, doses diárias de metáforas, elipses e bom senso fazem milagre.

‘Gol de bola parada não existe’ e outras pérolas de quem luta por uma língua literal —e cinzenta

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil