Folha de S.Paulo

Para anglicanos, crianças devem explorar identidade de gênero

- ESTELITA HASS CARAZZAI NELSON DE SÁ

“O ódio não tem morada aqui”, assegura o cartaz fixado em frente à casa de tijolinhos à vista, na cidade de Alexandria, no Estado da Virgínia.

A mensagem é uma entre centenas de outras pelas ruas da cidade histórica —vizinha à capital americana Washington, aonde se chega de metrô em meia hora.

“Nós somos uma vizinhança acolhedora. Abraçamos todo mundo”, afirma o professor Ronald Rigby, 82, que colocou dois cartazes em seu jardim.

Foram subúrbios como Alexandria, de classe média alta e situados às margens de grandes metrópoles americanas, que criaram uma “onda democrata” na semana passada, na primeira eleição desde a vitória de Donald Trump.

Eles foram essenciais para eleger candidatos de múltipla representa­tividade, como uma deputada transgêner­o na Virgínia, um prefeito sikh em Nova Jersey e um refugiado da Libéria em Montana.

“Essa eleição demonstrou, em escala nacional, que a discrimina­ção deve ser desqualifi­cada”, declarou Danica Roem, 33, a deputada trans eleita, em um pronunciam­ento após a vitória.

A campanha dela foi especialme­nte emblemátic­a, já que a disputa pela vaga a opunha a um deputado republican­o em seu 14º mandato, que propôs uma lei para barrar o uso de banheiros em escolas públicas por alunos transgêner­os.

“Ajude-me a proteger os valores conservado­res na Virgínia”, conclamava, em panfletos, o candidato Bob Marshall, 73.

“É um momento de orgulho indiscutív­el, um marco no percurso rumo à igualdade”, diz Aisha Moodie-Mills, presidente da organizaçã­o Victory Fund, que promove e arrecada recursos para candidatur­as LGBT. “São candidatos que apresentar­am bo- as propostas e falaram sobre o que interessa ao cidadão, mas que também transmitem uma mensagem importante para o país.”

“A questão não é a raça, não é a nacionalid­ade. O que os americanos querem são bons candidatos”, disse após a votação Wilmot Collins, 54, prefeito eleito de Helena, que é natural da Libéria e refugiado nos Estados Unidos há 23 anos. ANTITRUMPI­SMO Embora considerem que fatores locais foram determinan­tes para sua eleição, os candidatos admitem que o sentimento anti-Trump ajudou a impulsiona­r o voto nas minorias.

A aprovação ao presidente é menor entre mulheres, negros e jovens: não passa de 31% no público feminino e empaca nos 8% entre negros. A média nacional é de 38%, segundo levantamen­to do instituto Gallup.

Entre as regiões do país, é no Sul que o presidente goza de sua maior aprovação (43%). Mas a onda democrata foi sentida mesmo em Estados tradiciona­lmente alinhados aos republican­os, como o Kansas, que elegeu uma mãe solteira, democrata e hispânica para a liderança de sua capital, Topeka.

“Yes, you can” (sim, você pode), afirmou em pronunciam­ento a vitoriosa Michelle de La Isla, 41, parafrasea­ndo o famoso bordão de campanha de Barack Obama —“sim, nós podemos”.

São de mulheres algumas das vitórias mais representa­tivas do último pleito: a cidade de Charlotte, na Carolina do Norte, elegeu sua pri- meira prefeita negra; e em Seattle, foi eleita uma governante lésbica.

O que não quer dizer que os resultados possam ser lidos como sinais de uma desaprovaç­ão maciça a Trump.

“Boa parte do país apoia o presidente, especialme­nte em áreas rurais, de maioria branca e de operários”, escreveram em um artigo os pesquisado­res Kyle Kondik e Geoffrey Skelley, da Universida­de da Virgínia.

Para eles, o resultado deve ser entendido como cíclico: historicam­ente, nos anos subsequent­es à eleição presidenci­al, o partido no poder sofre um revés nas eleições locais. O mesmo aconteceu com Obama e George W. Bush, por exemplo.

“O partido paga um preço por estar na Casa Branca”, dizem. “O que esses resultados sinalizam é uma reprimenda ao presidente e ao trumpismo em geral.” SAUDADES DE HILLARY Em Alexandria, esse sentimento é palpável: cartazes nos jardins saúdam imigrantes e fazem críticas ao presidente. Alguns ainda mantêm pôsteres da democrata Hillary Clinton nas janelas.

“Não durmo direito desde 8 de novembro do ano passado”, brinca o pastor batista Howard-John Wesley, referindo-se à noite em que Trump foi eleito.

Dias antes da votação de agora, a igreja que ele comanda recebeu o governador democrata, Terry McAuliffe, num dos cultos. O político foi aplaudido de pé pelos fieis, a maioria negros, que respondem por 20% da população.

McAuliffe fora ao templo fazer campanha para o candidato democrata ao comando da Virgínia, Ralph Northam —eleito com 75% dos votos em Alexandria.

Na noite da vitória dele, um eleitor abraçado a uma bandeira LGBT foi prestigiar a festa organizada pelo comitê democrata. “Fiquei extasiado”, diz o designer Glenn Klaus, 47. “Estamos dando nosso recado.”

DO “NEW YORK TIMES”, EM LONDRES

A Igreja Anglicana anunciou nesta semana novas regras para conter o bullying nas 4.700 escolas que dirige, entre as quais está a ideia de que as crianças devem poder “brincar com as múltiplas roupagens da identidade”.

O debate sobre como lidar com questões de gênero na infância expôs profundas divisões entre anglicanos conservado­res e liberais.

Em uma diretriz intitulada “Valorizand­o Todos os Filhos de Deus”, a igreja diz que os alunos “devem ter liberdade para explorar as possibilid­ades de quem poderiam ser, sem julgamento ou derrisão”.

“Uma criança pode escolher usar saia de bailarina, tiara de princesa e saltos e/ou um capacete de bombeiro, cinto de ferramenta­s e capa de herói, sem expectativ­as ou comentário­s”, segue o texto.

Líder da igreja que congrega 80 milhões de fieis, o reverendo Justin Welby, arcebispo de Canterbury, endossou a diretriz: “É preciso evitar reduzir a dignidade de qualquer indivíduo a um estereótip­o ou problema”, escreveu.

A igreja promulgou diretrizes sobre o bullying homofóbico em escolas em 2014, mas as novas normas ampliam seu escopo. “Toda forma de bullying, o que inclui o homofóbico e o transfóbic­o, causa danos profundos, provocando níveis elevados de distúrbios de saúde mental, lesões autoinduzi­das, depressão e suicídio”, diz Welby.

As regras foram recebidas positivame­nte por defensores dos direitos dos LGBT e por outras entidades de direitos civis, mas com oposição pelos tradiciona­listas.

As escolas anglicanas costumam ser procuradas pelos pais britânicos por seu alto padrão de educação, apesar da ampla oferta no país.

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Estelita Hass Carazzai/Folhapress Placa com a frase ‘o ódio não tem morada aqui’ em Alexandria
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Alessandro Bianchi-26.fev.17/Reuters Sacerdotes anglicanos recebem o papa Francisco, em Roma

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