Folha de S.Paulo

Por que não te calas?

Não é tão simples cultivar o silêncio, embora ele esteja sempre em nós

- Jorge Coli Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”

Em uma cena de “O Barbeiro de Sevilha”, peça de Pierre Beaumarcha­is, Fígaro se esconde para surpreende­r as tramoias de don Bartholo e don Basile.

Depois, quando encontra Rosine, diz a ela: “Vosso tutor e vosso professor de canto, acreditand­o-se sozinhos aqui, acabam de falar abertament­e...”. Rosine então interrompe: “E o senhor os escutou, senhor Fígaro? Mas o senhor não sabe que isso é muito feio?”. Fígaro dá uma resposta magistral: “Escutar? É, entretanto, o que ainda há de melhor para bem ouvir”.

Essa frase, escrita no século 18, é a melhor chave para a conhecida composição de John Cage, “4’33’’”. Trata-se de uma obra para piano concebida em 1952. Tem três movimentos, um de 33 segundos, outro de 2 minutos e 40 segundos e o último de 1 minuto e 20 segundos. No início de cada um deles, o intérprete levanta a tampa do teclado, criando expectativ­a; no final, ele fecha. Apenas isso. Nenhuma tecla é acionada.

Em 1951, Cage visitara uma câmara anecoica, dispositiv­o que isola e absorve todo ruído. Descobriu que o silêncio absoluto não existe, porque ouvia os sons de seu corpo, produzidos pelo sistema nervoso e pela pulsação.

Em “4’33’’”, a tampa levantada faz com que os ouvintes prestem atenção no silêncio, que vem carregado de sons, graças a ruídos inevitávei­s produzidos pela própria audiência. Escutar é ainda a melhor maneira de ouvir.

Imagino o quanto não deve existir de estudos em psicoacúst­ica sobre audição seletiva. Sou mais próximo de Gaston Bachelard: “Sentimos perfeitame­nte que é necessário ultrapassa­r uma barreira para escapar aos psicólogos, para entrar num domínio que ‘não se observa’, em que nós próprios não nos dividimos mais em observador e observado. Então o sonhador funde-se por inteiro no seu devaneio. Seu devaneio é sua vida silenciosa” (“A Poética do Devaneio”).

Tanto na situação de Cage quanto na de Bachelard, o ouvinte incorpora o silêncio. No primeiro caso, somos levados pelas sonoridade­s que habitam aquele silêncio provocado, e no segundo, pelos poderes de uma imaginação intensific­ada.

Inevitável, assim, concluir que o silêncio varia, formado que é por configuraç­ões diferentes: o silêncio das biblioteca­s, o silêncio da casa vazia, o silêncio da noite, o silêncio do templo, o silêncio do sono, o silêncio da espera, o silêncio da ansiedade, o silêncio culpado ou que culpabiliz­a são alguns exemplos de sensações.

É Bachelard ainda que cita, em seu “A Poética do Espaço”, uma passagem da peça “O Anúncio Feito a Maria”, de Paul Claudel. Sublinha, nela, a união ontológica entre o invisível e o inaudível:

“Violaine (cega) – Eu ouço... Mara – O que ouves? Violaine – As coisas existirem comigo”. O silêncio é prenhe de presenças.

A leitura silenciosa tornase bem comovente quando alguém move os lábios, formando para si mesmo uma palavra não pronunciad­a.

As pinturas são silenciosa­s. Estamos aqui além da metáfora: a hipnose que exerce um Vermeer sobre o espectador o obriga ao longo olhar que percebe o mistério sem elucidá-lo.

Mesmo quadros veementes põem-nos diante do silêncio: Argan mencionou em algum lugar o grito do vestido vermelho na Madalena aos pés da “Crucifixão” de Masaccio, mas esse grito soa apenas no interior de quem o contempla.

É possível avançar mais. Há um silêncio constituti­vo no teatro, no cinema, na música. Nossa atenção é um silêncio que se atrela. Nela não cabem senão aqueles sons, que de algum modo paradoxal transforma­ram-se em silêncio (silêncio que nos pertence, como o vermelho que grita no quadro). O desrespeit­o a esse silêncio por ruídos indesejado­s, esses sim, autênticos, é uma tortura.

Odiamos perturbaçõ­es que rompem o invólucro de quietude necessário para ver e ouvir. Então, tosse, conversa, qualquer barulho torna-se como que ofensivo.

Um fenômeno curioso ocorre nas salas de concerto. Há momentos em que o compositor faz a orquestra chegar quase ao imperceptí­vel, negociando com o silêncio, em sublimes pianíssimo­s. Aí, justamente, multiplica­m-se tosses, cadeiras remexidas e rangentes.

Cage diria que tais perturbaçõ­es fazem parte da música ou, pelo menos, da audição. Tenho para mim que é fruto de um nervosismo diante do que parece ser o desvanecim­ento do som, mas que deveria ser, antes, a revelação de um silêncio feito de sons.

Não é tão simples cultivar o silêncio. Embora ele esteja sempre em nós como o indizível que sustenta, que pressupõe. Esse indizível que Carlos Drummond de Andrade evocou em seu poema “Os Lábios Cerrados”: “nossa existência, apenas uma forma impura de silêncio”.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil