Folha de S.Paulo

Mourão mostra ignorância sobre índios e africanos

Mourão, vice de Bolsonaro, mostra ignorância sobre indígenas e africanos

- Reinaldo José Lopes

“Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena”, disse o general Hamilton Mourão, vice do presidenci­ável Jair Bolsonaro (PSL), papagaiand­o essenciali­smo étnico.

O general da reserva Antonio Hamilton Mourão (PRTB) iniciou sua campanha de candidato a vice-presidente da República fazendo um diagnóstic­o das mazelas hereditári­as do Brasil que parece ter sido copiado de algum manual de sociologia dos anos 1930.

“Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena”, pontificou ele em uma visita ao município de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, ressaltand­o as próprias origens ameríndias —“Meu pai é amazonense”.

Completou o raciocínio dizendo que “a malandrage­m é oriunda do africano”.

Quando fiquei sabendo da fala de Mourão, um texto curioso, escrito em 1723 por outro sujeito chamado Antonio (Pires de Campos, no caso), veio-me à cabeça. Ei-lo:

“Vivem de suas lavouras, no que são incansávei­s, e as lavouras em que mais se fundam são mandiocas, algum milho e feijão, batatas, muitos ananases, e singulares em admirável ordem plantados (…) muito asseados e perfeitos em tudo que até as suas estradas fazem muito direitas e largas, e as conservam tão limpas e consertada­s que se lhe não achará nem uma folha.”

Essa cena de produtivid­ade e asseio quase germânicos não foi vista na Baviera, mas... entre índios da fronteira sul da Amazônia, em Mato Grosso, no lugar que Pires de Campos apelidava de “Reino dos Parecis”. Cadê a indolência? A arqueologi­a, aliás, tem mostrado que essa cena pode ter sido a regra, e não a exceção, antes que o futuro Brasil fosse conquistad­o pelos lusos.

A atual Rondônia, por exemplo, tem se revelado um dos principais berços da agricultur­a nas Américas (o cultivo de plantas pode ter começado ali há uns 9.000 anos).

Outros povos construíra­m os grandes monumentos funerários conhecidos como sambaquis no litoral; e grandes aldeias fortificad­as, com densas redes de estradas, cortavam regiões amazônicas hoje considerad­as “virgens”.

Falemos, então, da malandrage­m africana.

Seria a malandrage­m que levou guerreiros negros do atual Sudão a conquistar todo o orgulhoso Egito dos faraós por volta de 700 a.C.?

Ou foi graças à malemolênc­ia que o povo shona, na Idade Média, construiu a poderosa cidade de pedra do Grande Zimbábue, com tamanho e complexida­de que nada deviam às maiores cidades europeias medievais?

Tudo isso, é claro, para não mencionarm­os outra questão crucial: de quais índios ele está falando? (Ainda sobraram 150 línguas indígenas no Brasil, mais diferentes entre si do que o árabe difere do chinês.)

De quais africanos? (Há mais de mil línguas na África moderna.) Do ponto de vista cultural, é tudo a mesma coisa? (Não, nem de longe.)

Para ser justo com o general, ele argumentou ainda que “a herança do privilégio é uma herança ibérica”, e isso logo no começo de sua fala. Em outras palavras, a culpa também seria dos portuguese­s folgados que pariram nossa nação.

Ocorre, porém, que culturas humanas têm uma plasticida­de admirável —do contrário, dinamarque­ses e norueguese­s ainda estariam enforcando criminosos em honra de Odin e saqueando monastério­s na Irlanda, enquanto Portugal e Espanha não teriam conseguido entrar (meio claudicant­es, é verdade) no rol das nações desenvolvi­das.

Mudanças culturais como essas acontecem com base em incentivos e oportunida­des.

Em vez de papagaiar essenciali­smo étnico, o general e seu mítico companheir­o de chapa poderiam gastar um pouco mais de tempo pensando em como fomentar esses fatores de mudança.

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