Folha de S.Paulo

Sem filha, sem pai

Jamais imaginei passar um Dia dos Pais sem Marielle

- Antônio Francisco da Silva Neto Aposentado e pai de Marielle Franco, vereadora assassinad­a no Rio de Janeiro em 14 de março

Marielle sempre teve a chave da nossa casa. Quando a gente ouvia as passadas fortes dela subindo as escadas, já sentíamos a sua presença, já sabíamos que era ela chegando. Marielle não era mulher de passar despercebi­da; qualquer espaço que ocupava chamava a atenção com sua forma marcante de se colocar, suas iniciativa­s dominantes, sempre puxando a fila. Foi assim na nossa vida, foi assim na política institucio­nal.

Jamais imaginei passar o segundo domingo de agosto, Dia dos Pais, sem minha filha Marielle Franco.

Desde seu nascimento, há 39 anos, comemoramo­s esse dia em família. Quase sempre depois da missa, ela perguntava: “Para onde vamos? Vamos almoçar fora ou fazer algum almoço especial em casa?”. Muitas vezes ela já vinha com a resposta pronta. Ela era muito determinad­a, como sua mãe, Marinete, que com sua força moldou o arrojo e o caráter de Marielle e Anielle, sua irmã. As duas ainda me deram duas netas. Em casa, a voz marcante sempre foi a das mulheres.

Marielle era uma guerreira, uma leoa, que urrava e teimava em defender suas crias sem medo de nada. Ela era tão focada na defesa da vida dos outros que se preocupou menos com a sua.

Foi presa fácil na mira dos que a caçaram, dando fim a uma trajetória que vislumbrav­a brilhante. Mulher que não se curvava aos fatos covardes que seguem acontecend­o no Rio de Janeiro, vitimando as mesmas pessoas nas mesmas comunidade­s de sempre. Lugares que ela ousou estar, defender e representa­r.

Minha filha já não está mais aqui para caminhar ao lado de familiares e amigos das vítimas da violência, que invariavel­mente puderam contar com ela.

Agora, somos nós que contamos com eles; sentimos a presença de Marielle na força e na solidaried­ade que temos recebido do movimento de familiares de vítimas.

Apoio este, aliás, que se estende à família de Anderson Gomes. Ele tinha sido pai recentemen­te, deixou filho e esposa, no mesmo 14 de março. Nós nos apoiamos e nos solidariza­mos na mesma dor, especialme­nte neste Dia dos Pais. Eu, sem minha filha; e o filho dele, sem pai.

Essa tragédia que aconteceu na nossa família vitimou Marielle no auge de sua vida. Às vezes a gente acha que ela está viajando e vai voltar. Vai entrar na nossa casa de forma radiante como sempre. Suas passadas fortes pela escada vão nos acordar deste pesadelo. No fundo, sabemos que isso não vai acontecer.

O tempo não para, isso é fato. A vida continua. Mas precisamos, mais do que nunca, saber: quem mandou matar Marielle, quem matou Marielle e Anderson, e por que fizeram isso? Cinco meses sem respostas é tempo demais.

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