Folha de S.Paulo

Beijos fora do lugar

Texto sobre PM assassinad­a sofre avalanche de críticas por parte de leitores

- Paula Cesarino Costa

Na madrugada de 2 de agosto, a policial militar Juliane dos Santos Duarte, 27, desaparece­u da favela de Paraisópol­is, em São Paulo. Era seu primeiro dia de férias.

Juliane foi morta por criminosos depois de ter sido retirada de um bar, após ter se identifica­do como policial, para tentar recuperar um celular desapareci­do. Ela ficou pelo menos um dia em poder desses homens antes do assassinat­o.

Sob o título “Policial Juliane teve seus últimos momentos com bebida, pegação e dança”, reportagem publicada na Folha no último dia 9 provocou uma forte onda de críticas por meio de mensagens e telefonema­s à ombudsman, comentário­s no site e posts em redes sociais. Uniu numa mesma voz militantes feministas de esquerda e o candidato Jair Bolsonaro.

Baseada nas informaçõe­s do boletim de ocorrência, o texto da Folha narra a participaç­ão da policial em um churrasco onde conheceu duas jovens, depois a ida para a casa de uma delas, a busca por cerveja, o deslocamen­to até um bar, onde teria conhecido outra moça, a ida ao banheiro e o anúncio de que era PM.

O caso em si, a reportagem em foco e a reação quase uníssona de crítica ao jornal levantam questões importante­s: a qualidade e a intenção de um texto, a insensibil­idade do jornal, a equivalênc­ia de tratamento e a questão de gênero.

A reportagem foi considerad­a “preconceit­uosa”, “desrespeit­osa”, “difamatóri­a”, “completame­nte gratuita e desnecessá­ria a exposição da intimidade da vítima”, entre outros adjetivos. Mais de 70% dessas manifestaç­ões vieram de homens.

“Que importa quanto tempo a policial ficou no banheiro para o entendimen­to do crime? Que importa quem era a pessoa com quem “passou a trocar beijos”? A policial foi vítima e o que aconteceu antes nada tem a ver com o assassinat­o, em nada contribui para esclarecer em que circunstân­cias foi morta”, escreveu o diplomata Sérgio Paulo Benevides.

O leitor Bruno Lages afirmou que o texto cria uma relação implícita de causa e efeito: se

a mulher não tivesse dançado e beijado, talvez não tivesse sido morta. “Os desdobrame­ntos não ditos são funestos: mulher que dança e beija talvez tenha parte da culpa na própria morte.” Se fosse homem, o texto publicado seria igual?

Alguns viram viés antipolíci­a da Folha, comparando com o que considerar­am tratamento positivo do assassinat­o da vereadora Marielle Franco.

O editor do núcleo de Cidades, Eduardo Scolese, refutou que o texto contenha juízos de valor. “O texto conta o passo a passo da soldado Juliane antes de ter sido capturada e depois assassinad­a por criminosos.”

Para ele, a avaliação sobre a reportagem precisa considerar toda a cobertura. Falar em “desrespeit­o” ou “preconceit­o”, afirma, é ignorar a reportagem exclusiva “PM ficou ao menos um dia em poder de bandidos antes de ser assassinad­a” e o perfil “Assassinad­a, PM Sorriso era festeira, elogiada por chefes e queria ser da PF”.

Sobre o termo “pegação”, o editor explica que não condizia com o padrão lexical preconizad­o pela Folha, por ser coloquial demais, e por isso foi substituíd­o por “PM Juliane teve últimos momentos livres com bebida, beijos e dança”.

O perfil é de fato respeitoso e elogioso, como afirma Scolese. Só que cada reportagem tem de ser analisada em seu contexto único. É ilusório ampliar o foco para uma série de textos porque nem todos leram todos os textos. A análise deve ser concentrad­a na experiênci­a de leitura de cada um deles.

A reportagem sobre os últimos momentos de Juliane é justificáv­el como pauta, mas indefensáv­el como resultado. Fazia sentido levantar o que aconteceu imediatame­nte antes do desapareci­mento da policial, seja para traçar melhor seu perfil, seja para levantar hipóteses para explicar sua morte.

O problema reside na forma como foi feita, nas escolhas dos termos e no tom do texto. Como ficou óbvio para tantos leitores, não afeitos à técnica jornalísti­ca, a equivocada forma narrativa final traz informaçõe­s irrelevant­es e induz a conclusões preconceit­uosas, expostas desde o título.

O texto esteve entre os mais lidos —e criticados— por dois dias, mas o jornal optou por não alterá-lo para a publicação na versão impressa. Segundo o editor, “a Folha é sensível à manifestaç­ão dos seus leitores, discutiu o caso internamen­te, mas não viu motivo para alterar substancia­lmente o teor da reportagem”.

Impression­a que, após tantas reações, o jornal não tenha admitido que —no mínimo— passava mensagem equivocada na construção jornalísti­ca ambígua, popularesc­a e sexualizad­a com que noticiou os atos da policial antes do crime. Ao se prender às suas intenções, a Folha pecou por arrogância e distanciam­ento dos leitores.

Como provocaram alguns, o caso deveria aprofundar a discussão sobre gênero nas Redações. Será que a maioria das repórteres e das editoras permitiria que texto como esse fosse publicado? É provável que não.

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