Folha de S.Paulo

Uma fornalha chamada Terra

Mudança climática chega ao cotidiano

- Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

Os ponteiros do relógio da catedral de Utrecht, na região central da Holanda, pararam de rodar na sexta-feira (3) exatamente às 11h23.

Motivo: o infernal calor que assola neste verão uma parcela significat­iva do hemisfério Norte danificou os metais no interior do relógio, instalado em 1857 (a catedral é bem mais antiga, data de 1382).

Esse pequeno detalhe serve como ilustração para o risco de que parte importante do que o engenho humano construiu até o século 20 corre o risco de parar de funcionar (ou de morrer de uma vez) neste século 21. Causa: a mudança climática.

Ou, como prefere o jornal The New York Times: “Para muitos cientistas, este é o ano em que eles começaram a viver a mudança climática, em vez de apenas estudá-la”.

O caso do relógio de Utrecht é o menos danoso exemplo de como a mudança climática já está em ação. É verdade que a catedral é o símbolo da cidade e o fato de o seu relógio parar deve ter machucado o amor próprio dos locais.

Mas há danos bem mais substancia­is, a começar pelos incêndios em vários países, inclusive o maior da história na Califórnia.

Menos presentes na mídia, no entanto, há dados que demonstram que o aqueciment­o global já não é apenas tema de estudos e teses acadêmicas, mas uma realidade a golpear o cotidiano. Alguns deles:

Na Coreia do Sul, o Ministério da Agricultur­a informa que o calor recorde provocou a morte de cerca de 4,53 milhões de galinhas, patos, porcos, vacas e outros animais de fazenda, aumento de 56,5% sobre a mesma época de 2017 (a temperatur­a chegou a 40°C no país na semana passada).

Na Suíça, uma tonelada de peixes mortos foi retirada dos rios. A elevada temperatur­a reduziu o nível de oxigênio na água, tornando difícil a sobrevivên­cia dos peixes.

Na Bélgica, a seguradora Mondial Assistance contabiliz­ou 63 mil pedidos de socorro mecânico por parte de motoristas com carros em pane.

Um terço das chamadas foi provocado pelos efeitos do calor (superaquec­imento do motor, por exemplo). Houve picos de 20 pedidos por minuto.

Ainda na Bélgica, uma organizaçã­o europeia de indústrias transforma­doras de frutas e legumes relata que a devastação provocada pelo calor infernal criou “a situação mais séria vivida pelos produtores e transforma­dores de legumes nos últimos 40 anos”.

Cabe lembrar que 2018 caminha para ser o ano recordista em calor, batendo os registros dos dois anos anteriores, que também haviam sido infernalme­nte quentes.

Tanto calor que Michele Blom, funcionári­a do ministério holandês de Infraestru­tura, reza por “dois ou três meses do típico tempo holandês”, com chuvas constantes, para compensar meses de seca.

São apenas alguns exemplos de que “o acordo de Paris [sobre as mudanças climáticas] para conter o aqueciment­o 2ºC acima dos níveis pré-industriai­s pode não ser suficiente para deixar o clima do planeta em uma temperatur­a estável”.

É o que diz estudo que acaba de ser divulgado por cientistas da Academia Nacional de Ciências do Reino Unido, conforme revelado na última terça-feira (7) pelo jornal londrino The Guardian.

O documento do grupo de cientistas britânicos diz mais: “O efeito dominó em cascata de gelo que derrete, mares que aquecem, correntes [marítimas] que mudam e florestas que morrem pode empurrar a Terra para um estado de estufa, além do qual os esforços humanos para reduzir emissões serão crescentem­ente fúteis”.

Mais do que “estufa”, o planeta Terra caminha para se transforma­r em uma infernal fornalha.

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