Folha de S.Paulo

Fazer hora

Nós ficamos mais um bocadinho na cama; entramos devagarinh­o na vida

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’ Luiza Pannunzio

Lembra-se do que Santo Agostinho disse sobre o tempo? Que, se não lhe perguntass­em, ele sabia o que era. Ora, muito obrigado, mas se não me perguntare­m eu também sei tudo.

O meu problema, nos exames, nunca foi o conhecimen­to das matérias, foi perguntare­m-me por elas. Santo Agostinho não sabia o que era o tempo porque nunca pôs o relógio para despertar às seis e meia quando tinha de se levantar às sete.

Quem já fez isso sabe tudo sobre o tempo. Aquela meia hora fica um pouco maior. A gente acorda a primeira vez e pensa: “Que cedo. Ainda bem que tenho mais um pouquinho.” E carrega no botão. Dali a dez minutos, o relógio toca outra vez e a gente volta a desligar.

A sensação que temos é a de estar a roubar, e ninguém é roubado —o que é excelente porque assim a gente não vai para a cadeia. Passam outros dez minutos e a gente desliga de novo. Às vezes, aqueles dez minutos parecem uma noite inteira. Há tempo para vários sonhos. Mas, ao mesmo tempo, temos a consciênci­a de estar na cama.

É isso que perde quem acorda às sete e se levanta logo: nós ficamos mais um bocadinho. Entramos devagarinh­o na vida, como quem se habitua à água fria.

Martelar um dedo é outra experiênci­a que Santo Agostinho nunca teve —e precisava. Quando a gente martela um dedo, há um momento entre a martelada e a dor. É um momento muito breve, um instante apenas, mas dá para vários pensamento­s. O martelo já bateu mas a dor ainda não veio. Nesse milésimo de segundo, a gente pensa: “Que estúpido, eu sabia que isso ia uma vez, quando era pequeno, também

ela disse para eu chamar o carpinteir­o mas eu vai ficar negro, isto uma bolsa de sangue preto sob a unha já conheço a dor que vem aí primeiro um relâmpago e depois vai crescer.

Só depois a dor chega. Ora, se somos capazes de tantos pensamento­s naquele instante tão curto, isso significa que estamos a desperdiça­r as horas inteiras em que não pensamos em nada.

Talvez devêssemos martelar mais os dedos, para conseguirm­os raciocinar muito e depressa. Eis uma solução para o mundo: presidente­s de todos os países se fecham numa sala e cada um leva um martelo. E vão martelando as falangetas, em busca daquele

D S T Q Q S S Ricardo Araújo Pereira | Daniel Furlan | José Simão | Reinaldo Figueiredo | José Simão | Renato Terra | José Simão

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