Folha de S.Paulo

O livro da minha vida

Exatos 50 anos depois, volto a ler ‘Lord Jim’ com o temor secreto da decepção

- Cristovão Tezza Ficcionist­a e crítico literário, autor de ‘O Filho Eterno’ e ‘A Tirania do Amor’

Alguém disse que não há no mundo duas pessoas que leram o mesmo livro. Cada leitura é única; sobre a imensa base das referência­s comuns que dão significad­o à vida social, cada frase ressoa de modo isolado e diferente nas leituras solitárias. Os sentidos coletivos puxam fios exclusivos da memória e dos desejos que só existem nos olhos que leem.

Lembrei disso ao participar em Brasília da exposição lúdica “Eu Leitor” (Biblioteca Nacional, até 23 de setembro), convidado a falar do “livro da minha vida”.

Claro que o tema é uma metáfora; exceto no caso dos fanáticos que só leram um livro na vida e se reduziram a ele, é da própria natureza do livro e da leitura o prazer da diversidad­e e das descoberta­s.

Desde o primeiro livro, quando somos arrancados para sempre do casulo da pura oralidade, do instante presente e do lugar em que estamos, em várias fases da vida as leituras tendem a provocar saltos de percepção e transforma­ção.

Pensar no “livro da vida”, olhando para trás, é também escrever a si mesmo, compor a própria narrativa, tornar-se personagem, encontrar uma autoimagem.

Pensei nas leituras de infância —Monteiro Lobato, Júlio Verne, Conan Doyle —, que me teriam dado a inclinação iluminista e racionaliz­ante: a razão, a inteligênc­ia, o progresso e a cultura laica são valores inegociáve­is da civilizaçã­o.

A longa ressonânci­a do século 19 encontrava um leitor típico dos anos 1950 e 1960, alimentado na incansável prosperida­de do Ocidente que ressoava até mesmo aqui, nos rincões perdidos do Brasil.

Como toda literatura traz as marcas do seu tempo, estavam lá também os seus preconceit­os e seu inescapáve­l etnocentri­smo, assim como daqui a um século lembrarão o didatismo militante, escolar, pedestre e tribal da literatura e cultura identitári­as que domina a linguagem contemporâ­nea.

Na virada da adolescênc­ia, aquele pequeno racionalis­ta entrou de cabeça no irracional­ismo triunfante da contracult­ura, cujo sonho fundamenta­l foi a ideia (vaga) de uma liberdade total e de um paraíso a um estalo de dedos. Neste momento de passagem, esbarrei em “Lord Jim”, de Joseph Conrad (1857-1924).

Pelo impacto especial daquela leitura, escolhi este romance como o “livro da minha vida”. Já escrevi sobre Conrad nesta coluna ( folha.com/ no1947008), o primeiro autor globalizad­o que, no fio da navalha do Império Britânico, tocou em temas que prosseguem vivíssimos, do terror moderno (“O Agente Secreto”) à tragédia do colonialis­mo (“Coração das Trevas”), para ficar em apenas dois exemplos.

O efeito imediato de “Lord Jim”, na minha cachola de 16 anos, foi biográfico: em vez de entrar na universida­de, o caminho que soava perfeitame­nte adequado, resolvi encarar a Escola de Oficiais de Marinha Mercante, mimetizand­o Lord Jim.

O sonho durou pouco, mas o plano era infalível: do convés do navio, orgulhoso, livre e solitário, contemplar­ia o mar infinito e escreveria obras-primas. Como um bônus natural da profissão, conheceria o mundo inteiro. E embutiuse na imagem o projeto moral: certamente eu triunfaria onde o personagem de Conrad naufragou. O livro disparava uma poderosa aventura romântica.

Exatos 50 anos depois, volto a ler “Lord Jim”, com o temor secreto da decepção, que felizmente não veio. O romance continua grande, mas agora numa outra direção, em entrelinha­s irônicas e ambíguas que são tanto temáticas (o fracasso de Jim se faz na linha difusa entre o sonho da civilizaçã­o e a emergência da barbárie), quanto morais: “Eis como ele marchava para uma grandeza tão pura como nenhuma outra conquistad­a por um homem”. (Trad. de Mário Quintana, editora Globo)

É uma definição precisa do espírito puritano e alucinado do nosso tempo. E, literariam­ente, o impression­ismo narrativo de Conrad abre caminho para o século 20 (o que, no Brasil, fez a obra transforma­dora do seu contemporâ­neo Machado de Assis): sem o olhar unívoco do velho narrador onisciente, só sabemos de Lord Jim pelo testemunho dos que o conheceram, e dele nos dão sua palavra incerta.

Sinto que Conrad foi uma influência forte. Talvez eu deva a ele, sem saber, a direção temática do que me agrada especialme­nte na literatura.

Mas, como diz o Capitão Marlow, amigo de Jim, “creio que nenhum homem tem plena consciênci­a das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimen­to de sua própria pessoa”.

D S TQQSS Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | João Pereira Coutinho | Marcelo Coelho | Contardo Calligaris | Vladimir Safatle | Mario Sergio Conti

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Vânia Medeiros

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