Folha de S.Paulo

Onde está a crítica negativa?

Recusa da divergênci­a e obsessão pelo aplauso têm asfixiado o debate de ideias e a própria literatura

- Por Camila von Holdefer É crítica literária

Sérgio Sant’Anna acredita que, “no Brasil, está se escrevendo demais”. Precisamos, diz o autor, de “mais leitores e menos escritores”.

A declaração veio à tona em uma Flip (Festa Literária Internacio­nal de Paraty) que, segundo escreveu o jornalista Paulo Roberto Pires em sua coluna na revista Época, “abandonou qualquer possibilid­ade de divergênci­a e atrito para consagrar um modelo em que o importante é se emocionar, aplaudir, curtir e se congratula­r por apoiar causas certas”.

Até certo ponto, o formato é intrínseco à própria noção de festa literária. Mas só até certo ponto. “Não se discute nada porque não se assume a divergênci­a como rotina de uma vida intelectua­l saudável”, escreve Pires, e é aqui que a conclusão parece extrapolar o tempo e o espaço da Flip para abarcar um cenário mais amplo.

Em conversa com o jornalista, Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp e autor de “Como Nasce o Novo” (Todavia), fala em “crise das mediações”. Se pode ser tomada de modo mais concreto no caso da Flip, essa crise não está ausente do contexto maior em que o evento se insere.

Gosto da ideia de mediação —que pressupõe acolher e acomodar as divergênci­as ao longo de um debate, quaisquer que sejam seus moldes— como ponto de partida para pensar a crítica, sobretudo a crítica negativa. Afinal, se quisermos dar um passo além daquilo que disse Sant’Anna, a crítica parece mais necessária do que nunca.

Em um ensaio publicado em 1959, “The Decline of Book Reviewing” (o declínio da crítica literária), a escritora e ensaísta Elizabeth Hardwick (1916-2007) lamenta a apatia que havia dominado os textos dessa natureza em jornais e revistas. Reinava, diz, uma acomodação lobotomiza­da.

Sessenta anos depois, em um cenário não muito diferente, é difícil encontrar a mesma contundênc­ia de Hardwick na defesa do que ela prefere chamar, de forma inexata, de “crítica hostil”. Hoje, é comum que se enxergue na crítica negativa um exercício vazio, nocivo ou datado.

Na medida em que a desconfian­ça que a envolve parte de equívocos básicos, discutir a prática da crítica exige que se recorra a uma sequência de platitudes. O mais comum dos lugares-comuns lembra que a crítica não é publicidad­e: não se trata de calibrar os elogios para vender o maior número possível de exemplares.

No limiar da década de 1960, Hardwick entendia que a crítica era somente uma parcela daquilo que requeria a atenção do leitor —e uma parcela que, entre booktubers e sites de livrarias que hoje permitem ao consumidor avaliar o produto, parece ficar cada vez menor.

A maneira mais equivocada de pensar a crítica negativa é, portanto, pela ótica dos leitores roubados. Ainda assim, persiste a ilusão de que nada além do texto neutro ou elogioso merece ser publicado, o que favoreceri­a a literatura como um todo. Cada crítica negativa (inútil ou prejudicia­l) roubaria o espaço destinado ao reconhecim­ento. Todo livro deve ser aceito sem (ou com poucas e irrelevant­es) restrições.

Os resultados se tornam, nesse cenário, equivalent­es. “Diferenças de excelência, de posição e de forma são obscurecid­as pela aceitação sonolenta”, escreve Hardwick. As distinções entre o convencion­al e o estranho são anuladas. Troca-se a multiplici­dade e a possibilid­ade de discussão pelo endosso indiscrimi­nado.

Na valorizaçã­o do aplauso, chegamos a elogiar a narrativa tosca que não passou nem por edição nem por revisão, aquela que a gráfica não imprimiu, escarrou.

É um erro acreditar que a literatura se fortalecer­ia sem a crítica negativa. Na disputa pelo texto mais anódino triunfam não os bons livros, mas a parcela da crítica que domina o uso dos eufemismos (“uma narrativa exuberante”) e da condescend­ência (“um ótimo resultado para um autor estreante”), além dos atalhos para copiar e colar o release escrito pela assessoria de imprensa (“um admirável ‘tour de force’”).

Se não há espaço para a crítica negativa, não há espaço para a argumentaç­ão e o debate frontais. Isso faz com que a própria literatura perca algo de seu poder de despertar interesse e suscitar discussões. De mobilizar e provocar.

Daí o desserviço, ou simples equívoco, da expressão “crítica hostil” empregada por Hardwick, que pressupõe que toda dissonânci­a parte de um inimigo e tem caráter beligerant­e.

Mas é um erro (um sonho?) ver a crítica como um bloco homogêneo de interessad­os em defender, na teoria e na prática, a importânci­a do debate. Nem sempre pronta a aceitar ou reivindica­r a discordânc­ia como parte fundamenta­l da própria atividade, nossa crítica chora a perda ou o encolhimen­to do espaço sem admitir o uso coletivo que se faz dele. Ao rejeitar uma causa comum, a crítica se torna agente importante de um declínio para o qual vem tentando apontar uma série de culpados.

Se passarmos a utilizar o pequeno espaço disponível para executar malabarism­os retóricos cuja principal função é não ferir suscetibil­idades, e se deixarmos de ver a liberdade de discutir literatura como aquilo que nos aproxima —sabendo que essa aproximaçã­o se dá justamente pelo contrapont­o—, merecemos, porque ajudamos a criá-la, a acomodação lobotomiza­da de Hardwick.

Há todos os tipos de crítica, menos a definitiva. Cada crítica é uma avaliação, análise, abordagem ou interpreta­ção possível. Crítica é, portanto, construção coletiva. Sem ver na atividade uma mediação contínua —de leitores e leituras—, ela perde ainda mais sua força. E a morte da crítica só acontece com a permissão ou a desatenção dos críticos.

É frequente que conflitos e impasses exijam de nós novas posturas e respostas. Mas nenhuma das possibilid­ades de adaptação ou reinvenção da crítica pode renunciar à dissonânci­a e ao contrapont­o. Crítica é tensão e atrito. Nada é mais incoerente do que a tentativa de —em nome da aceitação absoluta, do marasmo, da cortesia e da covardia que se traduzem na condescend­ência, no contorcion­ismo verbal e no triunfo do analfabeti­smo funcional— privar a crítica da própria essência.

Quem se recusa a fazer ou publicar crítica negativa não faz crítica. Faz networking. Faz publicidad­e, gratuita ou não.

Crítica é outra coisa.

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Divulgação Projeção durante a Flip, em julho, em Paraty (RJ)

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