Folha de S.Paulo

A Billie Holiday que era Ella Fitzgerald

‘Álbum com canções de Cole Porter foi tão importante quanto livros de Sylvia Plath ou Ana Cristina César’

- A obra que marcou Angélica Freitas Poeta e tradutora, é autora de “Um Útero É do Tamanho de Um Punho”

Quando eu tinha uns 17 anos, por aí, passei vários meses envolta numa névoa tecnicolor que me salvou do mofo reinante na minha cidade natal, Pelotas, no Rio Grande do Sul.

No início dos anos 1990, a gente não tinha internet, e, lá no finzinho do Brasil, conhecer música ou livros novos dependia unicamente de uma boa alma que os tivesse e nos emprestass­e. Meu amigo Andrei Cunha, cujo pai era professor universitá­rio e tinha uma grande coleção de LPs, foi essa boa alma.

Um dia, o Andrei —a quem eu deveria parecer uma selvagem que ouvia Madonna e The Smiths— me entregou uma fita cassete sem identifica­ção e disse: “Ouve isto”. Apertei play e por meses passei minha vida desperta agarrada àquele pedaço de plástico com intestino magnético.

A fita dava duplos carpados do lado A para o lado B em meu Sony Walkman. Era a voz mais linda que eu já havia escutado. E a poesia mais lépida, engraçada, sublime e fred-astérica que adentrara minha cachola. Pirei.

“You’re the Top”: um clássico. “Você é o máximo”, diz Cole Porter. E para convencer o objeto de seu desejo, faz uma enumeração maluca, e em inglês as rimas são mirabolant­es: você é o Coliseu, você é o Museu do Louvre. Mas também é camembert, é a salada Waldorf. É o inferno de Dante, é o nariz do Jimmy Durante. É a Mona Lisa, é Mickey Mouse!

Porter implodiu essa questão de alta cultura versus cultura popular nos anos 1930. A canção faz parte do musical “Anything Goes” (1934), simpaticam­ente traduzido para o português como “Fuzarca a Bordo”.

“I Get a Kick Out of You”, algo como “o meu barato é você”, deixa claro que nem cocaína, nem champanhe, nem mesmo voar alto pelos céus bate o efeito de estar com o ser amado. Como superar Cole Porter em canções de amor? Podemos nos divertir na tentativa, ao menos.

“Let’s Do It, Let’s Fall in Love”, “Everytime We Say Goodbye”, “All of You”: educação sentimenta­l das boas.

Naquela época eu já escrevia poemas, e o “Cole Porter Songbook” me foi tão importante quanto qualquer livro de Sylvia Plath ou de Ana Cristina César. Esse disco me fez confiar ainda mais na leveza (que grande qualidade) e no humor: “If the Harris pat means a Paris hat, Bebé!”.

Preciso ressaltar isso, ainda que fique parecendo uma tia chata: vocês que já nasceram com o Google não fazem ideia do que era pôr as mãos num tesouro desses, no fim do século passado. Façam-se esse favor e procurem “The Cole Porter Songbook” imediatame­nte.

Essas canções na voz da Ella inundaram minha vida de mágica. As letras, a voz, os arranjos! Glamour era isso, não aquelas debutantes de aparelho ortodôntic­o na coluna social do Diário Popular.

Dicção é uma palavra que para mim será sempre associada a mrs. Fitzgerald. Quando o próprio Cole Porter escutou as gravações, teria dito “My, what marvelous diction that girl has!” (“Uau, que dicção maravilhos­a aquela garota tem!”). Perto de Ella Fitzgerald, todo mundo precisa de um bom fonoaudiól­ogo.

Mas, como disse lá em cima, a fita cassete do Andrei não estava identifica­da. Por ser avoada e residir numa nuvem alto-estrato com vista para um arco-íris, eu havia entendido que aquilo era uma compilação dos maiores hits da Billie Holiday.

Inclusive já andava afirmando para todo mundo que a cantora tinha mudado a minha vida. Um antes e um depois! Não dá para voltar atrás!

“Nããão!”, disse meu amigo, fazendo uma careta de dor, quando lhe devolvi a fita. “Isso é Ella Fitzgerald, ‘The Cole Porter Songbook’!”

Mil desculpas, pediu a fã de Cyndi Lauper.

Depois eu fui atrás da Billie Holiday e descobri o que era ficar “blue”.

 ?? Karime Xavier/Folhapress ?? A poeta gaúcha Angélica Freitas com uma capa de LP, em São Paulo
Karime Xavier/Folhapress A poeta gaúcha Angélica Freitas com uma capa de LP, em São Paulo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil