Folha de S.Paulo

Um profeta na Terra de Santa Cruz

Mangabeira Unger entre a originalid­ade audaciosa e o lugar-comum

- D STQQSS Otavio Frias Filho, Jorge Coli, Angela Alonso, Bernardo Carvalho

Otavio Frias Filho Diretor de Redação da Folha, autor de “Queda Livre” e “Cinco Peças e Uma Farsa”

O filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger está lançando um novo livro, “Depois do Colonialis­mo Mental – Repensar e Reorganiza­r o Brasil” (Autonomia Literária). Novo livro em termos, pois se a segunda parte do volume é composta de artigos publicados na imprensa, principalm­ente neste jornal, a primeira é um ensaio em que o autor burila, mais uma vez, as ideias que o inspiram desde a segunda metade dos anos 1970.

Os escritos de Mangabeira, pela originalid­ade audaciosa, deveriam interessar todo brasileiro preocupado com o país.

Ele descarta tanto as políticas autoritári­as do marxismo, que falharam no teste da prática, quanto as vertentes autonomist­as da extrema-esquerda. Além de repelir também o pensamento de direita, por ser retrógrado e mesquinho, ele é ainda um crítico acerbo das combinaçõe­s de liberalism­o e social-democracia que estiveram em voga nas últimas décadas, por se limitarem a humanizar aspectos do capitalism­o, em vez de “reinventá-lo”.

As origens de um pensamento assim peculiar e intransige­nte estão em duas fontes. De um lado, o “progressis­mo” que vigorou nos Estados Unidos da primeira parte do século 20, sobretudo nos governos reformista­s dos dois Roosevelt, que canalizara­m a pressão popular crescente no rumo do estímulo ao pequeno negócio e da regulament­ação dos oligopólio­s. De outro, a fé em fórmulas redentoras que se encontra tanto no puritanism­o americano como no catolicism­o messiânico brasileiro.

Mangabeira começa onde começaram tantos de seus antecessor­es, pelo descompass­o entre as potenciali­dades incalculáv­eis do Brasil, dadas por sua unidade, vitalidade e sincretism­o, e o pouco que se obteve até agora em termos de realizaçõe­s emancipató­rias.

Seu texto vem embalado numa fulgurante retórica baiana que pode iludir. Suas ideias sobre educação, por exemplo, não estão longe do que virou lugar-comum no tema, ou seja, máxima prioridade a um ensino que capacite as inteligênc­ias para resolver problemas concretos e desenvolva sua visão crítica do mundo.

Quais os estratos a serem mobilizado­s por esse reformismo radical? São os emergentes, com sua paixão por subir na vida, são os batalhador­es, que tendem a seguir aqueles, são as massas menos qualificad­as, que têm pouco a perder.

Aqui sempre caiu a linha divisória entre nosso autor e os petistas, que ele via como representa­ntes da aristocrac­ia operária de São Paulo —mas isso até ceder ao canto de sereia de Lula, dois anos após ter clamado pelo impeachmen­t deste, para assumir em 2007 uma etérea Secretaria de Planejamen­to de Longo Prazo (que Reinaldo Azevedo apelidou inesqueciv­elmente de “Se Alopra”).

Até mesmo o mecanismo de freios e contrapeso­s, considerad­o em ciência política a maior contribuiç­ão dos redatores da Constituiç­ão americana à democracia, é rejeitado por Mangabeira, que nele vê uma fórmula conservado­ra de desacelera­r e esfriar a política, quando esta deveria ser conduzida pela paixão sob as rédeas da razão. O autor propõe uma mistura de democracia representa­tiva e direta, com recurso frequente a plebiscito­s e “recalls” de governante­s.

Os social-democratas brasileiro­s, para voltar por um momento a eles, são imitadores acanhados, que desejam fazer do Brasil uma “Suécia tropical”.

Mas o que haveria de tão errado nisso? Ora, diz Mangabeira, a tarefa mundial do Brasil é mostrar que é possível associar “pujança e ternura”. Somente isso poderia traduzir nossa verdadeira grandeza, definida como disposição para nos colocarmos em pé e irmos além de nossas próprias possibilid­ades. É certamente esse aspecto da utopia mangabeira­na que sensibiliz­a artistas ambiciosos, como Caetano Veloso, autor do prefácio.

E, de fato, o que é apresentad­o como ambição sagrada de todo um povo talvez se reduza a uma dimensão estética que mesmeriza profetas. Será que a ambição das pessoas comuns, normais, não consiste apenas em ter uma profissão decente, uma remuneraçã­o condigna, uma vida familiar em segurança, algum lazer de vez em quando? Será que vale a pena passar pelos horrores da revolução, da “política de alta energia”, para poder ostentar um título de originalid­ade? Isso é existencia­l ou frívolo?

Sobretudo num pensador que se diz dedicado à prática e à experiment­ação, sua vida não se pode dissociar de suas ideias. Mangabeira se mantém numa sinecura na Universida­de Harvard para, a cada eleição, fazer uma incursão pela Terra de Santa Cruz. Antes assessorav­a líderes voluntaris­tas, tumultuári­os, como Brizola e Ciro Gomes. Depois passou a tentar candidatur­a própria pelos partidos mais implausíve­is, e são também inesquecív­eis as caras e poses de Napoleão de hospício que ele fazia para as câmeras. Talvez se trate, afinal, mais da grandeza de Mangabeira do que do Brasil.

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