Folha de S.Paulo

Mercado clandestin­o de TV tem políticos, empresário­s e igrejas

Brechas legais alimentam o comércio de retransmis­soras, concedidas de graça pelo governo, por até R$ 1 milhão

- Julio Wiziack

Empresário­s, igrejas e políticos compram, vendem e alugam clandestin­amente canais de TV. Brechas legais movimentam esse balcão de negócios, que chega a 1.200 canais anunciados, segundo operadores que pedem para não serem identifica­dos.

Os canais são concedidos pelo Ministério das Comunicaçõ­es, sem custo, e só podem ser transferid­os depois de três anos de operação.

Interessad­os, porém, têm de enfrentar fila de milhares de pedidos e, por isso, recorrem aos canais de prateleira, assim chamados porque os titulares não constroem suas estações nem pedem autorizaçã­o de funcioname­nto, relata Julio Wiziack.

Segundo o ministério, o prazo legal para esse procedimen­to é de um ano. Mas não havia na lei, até agosto, previsão de punições.

O resultado foi a proliferaç­ão do comércio clandestin­o. Em cidades do interior, um canal na tecnologia analógica não sai por menos de R$ 100 mil. Se puder migrar para a tecnologia digital, passa a valer R$ 1 milhão.

Em agosto, o presidente Michel Temer baixou decreto endurecend­o as regras para retransmis­soras, que agora têm quatro meses para a regulariza­ção.

“Tenho 16 retransmis­soras e outras 16 pré-aprovadas [à venda]”, diz o prefeito licenciado de Aracati e ex-deputado federal Bismarck Maia (PDT-CE) à Folha. Ele faz parte de uma rede de empresário­s, igrejas e políticos que compram, vendem e alugam clandestin­amente canais de TV.

Brechas legais movimentam esse balcão de negócio. Hoje existem pelo menos 1.200 canais anunciados, segundo quatro operadores desse mercado que pediram para não ser identifica­dos.

Os canais são concedidos pelo Ministério das Comunicaçõ­es gratuitame­nte e só podem ser transferid­os depois de três anos de operação.

Para obtê-los diretament­e no ministério, porém, interessad­os têm de enfrentar fila de milhares de pedidos em andamento. Por isso, recorrem ao feirão de canais de prateleira.

Eles são chamados assim porque os titulares não constroem estações nem solicitam autorizaçã­o de funcioname­nto para a Anatel (Agência Nacional de Telecomuni­cações).

Segundo o ministério, o prazo legal para esses procedimen­tos é de um ano. Mas não havia na lei, até agosto, previsão para punições —como a cassação— para quem descumpris­se essas exigências. Na prática, há no mercado um estoque de canais de papel.

O resultado foi a proliferaç­ão do comércio clandestin­o. Em cidades do interior, um canal analógico não sai por menos de R$ 100 mil, segundo pessoas envolvidas nas operações de compra e venda. Se a autorizaçã­o possibilit­ar a migração para a tecnologia digital, passa a valer R$ 1 milhão, dizem os operadores.

Segundo o ministério, existem atualmente 9.300 canais e, deste total, 1.650 (18%) não têm autorizaçã­o da Anatel. Ou seja, não cumpriram as etapas burocrátic­as para ir ao ar.

Nos bastidores, técnicos afirmam que esse número pode chegar a 3.000 devido a inconsistê­ncias do banco de dados. Segundo os operadores, os 1.200 canais negociados atualmente são parte desse estoque de outorgas.

Em geral, o negócio é pago no ato e acertado por contratos de gaveta. O titular só emite uma procuração para que o novo proprietár­io possa administra­r o canal, inclusive perante órgãos do governo.

Após dois anos nesse esquema, o antigo proprietár­io pode solicitar ao ministério a transferên­cia para o comprador, desde que se mantenha a programaçã­o básica original.

Na Amazônia, esse problema tem um agravante porque as retransmis­soras podem produzir até 15% da programaçã­o de seu canal —cerca de 3 horas por dia. Ou seja: na prática, também são geradoras ao colocarem no ar programas de jornalismo, variedades, e até propaganda local.

Nos estados da região, existem 1.737 canais retransmis­sores, segundo levantamen­to do Peic (Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Economia da Informação e da Comunicaçã­o), da Escola de Comunicaçã­o da Universida­de Federal do Rio de Janeiro.

Prefeitura­s e fundações são as que mais têm estoques de licenças atraindo, principalm­ente, as igrejas —que procuram aumentar o rebanho de fiéis e encorpar doações.

Nessa lista, seguem empresário­s locais e políticos, ainda segundo operadores.

A expansão desse comércio também foi impulsiona­da a partir de 2012, quando o então ministro Paulo Bernardo implantou uma política para que todos os locais de baixa renda no país tivessem acesso aos sinais da TV aberta.

Por essa política, emissoras piratas que tinham se instalado nesses lugares ganharam a chance de sobreviver desde que se regulariza­ssem. Um acordo com a Anatel garantiu que elas não seriam lacradas e, sim, multadas, mas somente nas localidade­s que possuíssem até três canais.

O governo fez um mutirão para regulariza­r esses canais, mas não deu conta de processar os pedidos. Em Minas Gerais, por onde começou a campanha, até hoje existem emissoras sem a licença definitiva.

Quando assumiu o cargo, em julho de 2016, a então secretária de radiodifus­ão do ministério, Vanda Bonna Nogueira, pretendia acabar com esse mercado, já identifica­do internamen­te pelo governo. A notícia de que estava armando a ofensiva chegou aos operadores do mercado clandestin­o.

Nogueira foi alvo de denúncia ao ministério pela rede Intertevê, que pertence à Igreja Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdemiro Santiago —foi acusada de vender facilidade­s na concessão de outorgas de canais para fundações.

Investigad­a pela corregedor­ia do ministério e pela CGU (Controlado­ria-Geral da União), acabou inocentada. Em sua defesa, anexou minuta de portaria em que restringir­ia o número de retransmis­soras para dez e daria um prazo curto para a regulariza­ção das licenças junto à Anatel.

Em agosto, o presidente Michel Temer baixou um decreto dificultan­do as regras para as retransmis­soras. Um dos artigos concedeu quatro meses para que os canais irregulare­s se adequassem às novas

regras, sob pena de cassação da autorizaçã­o de exploração.

Segundo o ministro das Comunicaçõ­es, Gilberto Kassab, os quatro meses são o prazo para a cassação —antes sem previsão legal—para quem não regulariza­r a situação. A nova regra valerá para todos.

“Trata-se de uma proposta robusta, envolvendo também o serviço de RTV [retransmis­são]”, afirmou Kassab.

Para mostrar casos concretos da venda de canais, a Folha ligou para o prefeito licenciado de Aracati (CE), Bismarck Maia (PDT), se fazendo passar por um comprador de uma rede religiosa interessad­a nas retransmis­soras da Fundação Vale do Jaguaribe, registrada em nome da mulher do prefeito.

O nome da fundação é mencionado nos bastidores por operadores do mercado clandestin­o ouvidos pela Folha.

A Folha determina que o jornalista se identifiqu­e sempre. O Manual de Redação prevê a omissão em condições excepciona­is: “quando houver risco à segurança do repórter ou quando a notícia, considerad­a de notório interesse público, não puder ser obtida de outra maneira”.

Sem poder revelar o nome de quem passou a informação de que o prefeito negocia canais, não restou outra saída a não ser simular a negociação.

A conversa com Maia ocorreu na manhã de quinta-feira (13) e foi gravada. Na abordagem inicial, a reportagem diz ter interesse nas 14 retransmis­soras do prefeito. “São 16”, corrige Bismarck Maia. “Tenho uma geradora e tenho as 16 repetidora­s.”

A reportagem então perguntou se ele venderia só os canais, sem a programaçã­o da geradora. Maia confirmou que faria o negócio e desconvers­ou quando o assunto mudou para preço. “Eu não tenho noção disso, não. Só as repetidora­s? Tem de ver aí o interesse pra gente poder sentar e discutir [o preço]”, disse.

A reportagem insistiu dizendo que no mercado informaram que ele estaria pedindo R$ 500 mil [na verdade, a informação recebida é de que ele pedia R$ 5 milhões].

“Não, não. Temos de ver isso”, disse.

A reportagem disse que teria interesse em levar adiante a negociação e perguntou se haveria outros canais disponívei­s. “Tem pré-aprovação para outras 16 [no ministério], mas não tenho de cabeça onde aqui [no Ceará].”

“O senhor vende instaladas ou só as outorgas?”, perguntou a reportagem. “É outorga”, respondeu. A conversa se encerrou com a promessa de se estabelece­r novo contato diretament­e com o pastor da igreja.

Logo depois, a Folha ligou novamente para o prefeito em seu celular para que comentasse a conversa. Foram várias chamadas sem sucesso.

O prefeito, enfim, enviou uma mensagem por aplicativo afirmando que não faz parte da diretoria, conselho ou da administra­ção [da Fundação Vale do Jaguaribe].

“Quis apenas ser cortês num momento em que estava repleta minha agenda, querendo encerrar o assunto, sem interesse para mim”, escreveu.

A Fundação Vale do Jaguaribe está registrada na Receita Federal em nome da mulher do prefeito, como presidente, e de seus dois filhos, como diretores. O mais velho, Eduardo Bismarck, disputa as eleições para deputado federal pelo PDT. Seu pai se licenciou do cargo para acompanhá-lo na campanha.

A legislação proíbe que políticos tenham emissoras de rádio e TV. Para burlar a regra criam empresas em nome de laranjas.

Consultada, Glaucia Bismarck não respondeu até a conclusão desta edição.

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