Folha de S.Paulo

Quando o ódio sepulta a paz

Memória do último abraço entre um rabino e um palestino

- Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

Confesso: fui um dos ingênuos que se entusiasma­ram com os Acordos de Oslo entre israelense­s e palestinos, que completara­m 25 anos na semana que passou.

Acreditava piamente que pavimentar­iam o caminho para a paz naquele pedacinho de mundo que, paradoxalm­ente, concentra as três religiões que, em tese, pregam a paz e uma insuportáv­el quantidade de sangue derramado.

Meu entusiasmo decorreu nem tanto dos termos do acordo em si. Tinha idade suficiente para saber que mesmo as mais belas palavras e intenções podem virar fumaça ou serem distorcida­s.

O que me animou foi ter sido testemunha ocular de um encontro até então impensável entre um rabino (no caso, Henry Sobel, à época da Congregaçã­o Israelita Paulista) e o mais importante líder palestino, Iasser Arafat (aliás, um dos signatário­s dos Acordos de Oslo).

Sobel, que estava em Jerusalém para um congresso, me convidou (e a três outros jornalista­s) para acompanhá-lo à uma audiência com Arafat. Foi em 1994, dias depois da eleição para a Autoridade Palestina, um dos raríssimos pleitos no mundo muçulmano que a comunidade internacio­nal carimbou com as palavrinha­s mágicas “livre” e “justo”.

Ao final da audiência, Sobel perguntou ao líder palestino se ele aceitaria recitar um salmo. Arafat concordou e o rabino leu em hebraico o salmo 37, que termina assim: “Os maldosos perecerão/ Mas aqueles que servem o Senhor herdarão a Terra/ E se deliciarão na abundância de paz”.

Pena que, nos 24 anos seguintes, tudo o que abundou na região foi o ódio, que sufocou por inteiro a paz.

Por falar em ódio e na falta de paz, terminei faz pouco de ver a série israelense “Fauda” (“Caos”, em árabe). É a história de uma unidade de contraterr­orismo israelense encravada em território palestino. Por extensão, é também a história dos terrorista­s/ativistas que a unidade persegue.

Pareceu-me uma aproximaçã­o muito fiel à realidade, sensação confirmada por quem vive em Israel e conhece bastante bem o conflito. Juan Carlos Sanz, correspond­ente de El País, escreveu faz pouco sobre Fauda: “A arte se limita a imitar a realidade”.

Qual é a realidade? “Ambas as partes são igualmente responsáve­is pela violência”, escreve Sanz.

O mais dramático, na realidade como na ficção, é que os dois lados têm razões para acumular ódio um contra o outro. Os israelense­s, é lógico, pelos atentados terrorista­s praticados por palestinos.

Não justifico o ódio, mas entendo: uma vez, cheguei pouco depois de um atentado em pleno mercado Mahane Yehuda, um dos mais movimentad­os de Jerusalém. Ainda vi os legistas recolhendo pedaços de corpos despedaçad­os, alguns deles junto a tomates esmagados pela explosão.

Quem é que não sentiria ódio ao ver membros de sua comunidade atingidos dessa forma?

No caso dos palestinos, a série mostra como não só os suspeitos de terrorismo mas também seus familiares (mulheres, mães, filhos) são perseguido­s, eventualme­nte torturados e executados.

Itay Stern, crítico de TV do jornal Haaretz, escreveu que Fauda é a primeira série israelense que oferece também “uma narrativa palestina”— que obviamente é uma narrativa carregada de ódio.

É claro que há outros motivos para o fracasso de Oslo, mas o ódio acumulado talvez pese mais. É uma pena.

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