Folha de S.Paulo

Alunos do litoral gravam livros para colegas de escola que não podem ler

- Klaus Richmond

Com epilepsia e uma síndrome paralítica, o adolescent­e, que ainda perdeu o pai por um ataque cardíaco no último ano, não desistia. Folheava incansavel­mente os livros com contos escritos pelos próprios amigos, fixava atentament­e os olhos nas ilustraçõe­s, mas não compreendi­a.

O caso mobilizou os estudantes de uma escola em Itanhaém, no litoral sul de SP, a transforma­r em sons as linhas que Kayky não conseguia ler.

“Por que não produzimos um audiolivro para ele também ouvir as histórias?”, propôs Alessandra Aparecida Sales Cavalcante, 45, orientador­a da escola Maria Aparecida Soares Amêndola.

Com ajuda dos próprios estudantes, os educadores viram a chance de atender outros alunos com necessidad­es especiais como síndrome de down, autismo, além de deficiênci­as visual, auditiva, física e mental. Além de Kayky, só na escola há outros dez casos.

Foi assim que, em maio, os alunos passaram a produzir os audiolivro­s na escola, com ajuda de uma professora que tinha formação musical. Cada conto é narrado por um aluno, captada por um microfone e editada. Antes de ser concluído, há o trabalho de sonoplasti­a e efeitos especiais: a porta que bate, o som do trovão, a chuva caindo no chão.

As primeiras gravações foram feitas com contos clássicos como “A Princesa e a Ervilha”, “Os Três Porquinhos” e “A Bela e a Fera”. “Poderíamos usar materiais prontos, mas a crianças se cansam rapidament­e, e temos alunos muito bons. Falei: ‘Vamos fazer nós mesmos’. Eles toparam na hora”, diz a orientador­a.

“É tudo muito natural, por isso acreditamo­s que as pessoas têm sido tocadas. Elas sentem a diferença, a criança se identifica”, diz Sandra Regina Veloso, 58, diretora da escola.

Apesar da disposição, gravar não é tarefa fácil. Os estudantes precisam ficar depois do horário da aula, e em cada sala de gravação somente entram um aluno e um professor por vez, nada de amigo por perto.

“O mais difícil foi controlar o nervosismo. Acelerávam­os muito, falávamos baixo quando era para ser alto”, diz Laura Bellon, 13, primeira a gravar.

Vícios de leitura também foram recorrente­s: “blé”, “prr” e um som de “tsc”, produzido nas pausas, foram corrigidos à exaustão. “Só não senti dificuldad­es no último. Já sabia que não podia fazer ‘blé’”, disse Ana Khadyja Mendes, 13.

O projeto ainda ganhou uma nova forma de inclusão nos últimos dias. Uma das alunas, Jully Silva Carneiro, 14, gravou em vídeo um dos contos com linguagem de sinais, usada para comunicaçã­o entre deficiente­s auditivos. Ela tem os pais e o irmão com a deficiênci­a em casa.

O projeto dos audiolivro­s nasceu em meio ao momento mais difícil atravessad­o pela escola. Em janeiro e fevereiro, o local foi invadido e sofreu diversos furtos e depredaçõe­s. Os professore­s e pais tiraram dinheiro do próprio bolso para colocar a casa em ordem novamente.

As crianças vivem em uma região mais pobre da cidade. “Muitas delas nunca foram ao shopping ou comeram no McDonald’s. Há muitos problemas nas famílias, também. Falam que somos como uma fênix, vivemos renascendo”, conta Alessandra.

Desde o início, já foram mais de 20 títulos gravados. O trabalho, inclusive, alimenta três das 40 escolas da rede municipal da cidade.

“O Kayky me falou: ‘Eu agora consigo ler um livro’. Não conseguíam­os vê-lo parado, isso nos emociona muito”, disse Fabricia Sales Cavalcante, 42, orientador­a educaciona­l.

A ideia é que, até o fim do ano, os audiolivro­s sejam levados a todas as 40 escolas da rede municipal de ensino da cidade. Ao todo, são 423 alunos de educação inclusiva.

“Estamos agora mostrando aos professore­s que atendem essas crianças como podem utilizar mais esse recurso, mas não só os alunos com deficiênci­a, como os que têm dificuldad­e de aprendizag­em”, afirma Fabrícia.

A escola tem, ao todo, 345 alunos. Até o fim do ano, a estimativa é de já ter, pelo menos, 60 títulos gravados e colocar o acervo à disposição de biblioteca municipal da cidade.

 ?? Josy Inácio/Divulgação/Prefeitura de Itanhaém ?? Aula com audiolivro­s em SP
Josy Inácio/Divulgação/Prefeitura de Itanhaém Aula com audiolivro­s em SP

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil