Folha de S.Paulo

Contra o racismo, sem militância

É impossível ver ‘Atlanta’ sem pensar por que nada parecido foi feito no Brasil

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Adeus, Controle Remoto’. É mestre em sociologia pela USP

Indicada a seis prêmios em cinco categorias no Emmy em 2017, “Atlanta” entrou para a história como a primeira série de comédia a premiar um profission­al negro como melhor diretor. Para se ter uma ideia mais clara do tamanho da conquista de Donald Glover, basta lembrar que o prêmio nessa categoria é dado desde 1959.

Criador da série, roteirista, diretor e ator, Glover foi premiado também pelo trabalho como protagonis­ta —ele vive o jovem Earn Marks, que abandonou a faculdade Princeton para se tornar empresário do primo Alfred Miles (Brian Tyree Henry), um cantor de gangsta rap que usa o nome artístico de Paper Boi.

A série, como informa o título, se passa em Atlanta e, basicament­e, encena situações vividas pela comunidade negra, cuja população é majoritári­a (54% do total) na cidade.

A primeira e mais forte caracterís­tica de “Atlanta”, na comparação com outras séries de perfil semelhante, é o esforço para não ser condescend­ente ou militante.

O racismo existe e é um tema da série, mas os personagen­s não são definidos apenas pela condição racial.

O ousado episódio que deu o Emmy de melhor direção a Glover, em 2017, por exemplo, é uma sátira mordaz a segmentos do universo que a série retrata. “B.A.N.” mostra a participaç­ão de Paper Boi em um talk show do fictício canal Black American Network.

O rapper é questionad­o por ter escrito no Twitter que nunca teria relações sexuais com a transexual Caitlyn Jenner.

O episódio inteiro se passa dentro do estúdio, como se fosse uma gravação em tempo real, incluindo os cômicos comerciais dedicados ao público-alvo do canal exibidos nos intervalos.

Nesta segunda-feira (17), na entrega do Emmy 2018, “Atlanta” já se apresenta com outro status. A segunda temporada da série foi indicada a 16 prêmios em 13 categorias. Glover está novamente indicado como ator, autor e diretor.

Ainda que esteja classifica­da como comédia, com episódios de 25 minutos, em média, “Atlanta” é uma típica “dramédia”. O atormentad­o Earn tem uma filha pequena e mantém uma relação complicada com a ex-mulher, Van (Zazie Beetz).

Paper Boi está começando a fazer sucesso, mas luta para não se “vender” ao sistema. Com raras exceções, o sorriso nunca sai de graça em “Atlanta”.

Pelo menos quatro dos 11 episódios desta nova temporada são excepciona­is. Em um deles, inteiramen­te ambientado no passado, é sugerida uma explicação para os laços fortes entre os dois primos. Um outro, dos mais soturnos, é dedicado exclusivam­ente a um personagem secundário, Darius (Lakeith Stanfield).

Em uma aula de comédia, Paper Boi passa um episódio inteiro na companhia do barbeiro sem conseguir cortar o cabelo. E, no mais engraçado de todos, Earn tenta mediar uma situação crítica vivida por um tio, que mantém um jacaré dentro de casa.

O canal FX já encomendou uma terceira temporada, com exibição prevista para 2019. As duas primeiras estão disponívei­s no aplicativo pago da Fox (a primeira também está na Netflix).

É impossível não assistir a “Atlanta” sem pensar por que o Brasil ainda não produziu uma série com esta força e qualidade. Não ignoro a realista “Cidade dos Homens” nem muito menos a divertida e alegórica “Mister Brau”, mas nenhuma das duas chegou perto do que Donald Glover está, audaciosam­ente, conseguind­o fazer.

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