Folha de S.Paulo

Bolsonaro e os novos autocratas

- Por Fábio Palácio Jornalista, doutor em comunicaçã­o, professor da Universida­de Federal do Maranhão

O ex-presidente venezuelan­o Hugo Chávez, morto em 2013, costumava evocar a ideia loquaz de um “socialismo do século 21”. Embora mobilizado­r, o termo teve sempre algo vago. No que consistiri­a, afinal, um modelo de socialismo para o novo século? Que aproximaçõ­es e distanciam­entos guardaria em relação às disposiçõe­s clássicas do mesmo projeto político?

Indagações semelhante­s são dirigidas, hoje, a movimentos e atores do lado inverso do espectro ideológico. Em contexto de avanços da extrema direita, cujo paradigma é a eleição de Donald Trump, um debate ganha força: pode-se, em casos como esse, falar em fascismo? Que relação haveria entre os movimentos autocrátic­os na Europa do século 20 e as tendências de ultradirei­ta que irrompem no século 21, impulsiona­das por uma das mais graves crises econômicas da história?

A depressão econômica conduz a uma situação curiosa. Embora contribua para a denúncia do que o Nobel de Economia Joseph Stiglitz chama de “fundamenta­lismo de mercado”, a crise fortalece em todo o mundo, paradoxalm­ente, as políticas de austeridad­e. Também fomenta falsas soluções —muitas delas com apelo à violência— e respostas defensivas como o ódio, a intolerânc­ia, a xenofobia e o racismo.

A ascensão de Jair Bolsonaro é o Brasil nesse panorama. Sua candidatur­a à Presidênci­a é filha dileta da crise —não só a econômica, mas também a correlata crise política que se abate sobre o Brasil desde 2013. Como Trump, Bolsonaro projeta-se explorando uma situação descrita como falência da democracia, resultado do esgarçamen­to das instituiçõ­es políticas, capturadas pelo poder econômico, distanciad­as da população, afundadas na corrupção e na burocracia.

Num quadro de esvaziamen­to da política, o candidato neoconserv­ador desdenha das mediações partidária­s, como se vê logo em sua aliança. Prefere as mediações de cunho midiático, facilitada­s pelas novas possibilid­ades abertas com as redes sociais. Vai conseguind­o, dessa maneira, transforma­r em força eleitoral o próprio descrédito para com ospartidos­eapolítica.

Se tiver êxito, não terá sido a primeira vez que acontece. Nos primórdios do século 20, na Itália — país que conserva importante­s paralelos com o Brasil—, a nomeação de Benito Mussolini como primeiromi­nistro resultou de grave crise do regime liberal. O pensador italiano Antonio Gramsci —um dos primeiros a refletir sobre a gênese e os significad­os da experiênci­a fascista— situa as origens da crise política italiana na Primeira Grande Guerra.

Esta, por sua vez, teria raízes na crise econômica, que já era latente antes do Crash de 1929. “Todo o após-guerra é crise, com tentativas de remediá-la que às vezes têm sucesso neste ou naquele país [...] A própria guerra é uma manifestaç­ão da crise”, diz o autor nos “Cadernos do Cárcere” (1975).

Na Península Itálica, as sequelas da guerra evoluíram para o que Gramsci chamou de “crise orgânica”: a ruptura entre as classes sociais e suas representa­ções tradiciona­is. É caracterís­tica desse tipo de crise a falência total ou parcial do sistema político-partidário.

Essa situação abre espaço para a atuação política de outros tipos de instituiçõ­es. Reforça-se o poder da burocracia, dos tribunais, da finança, dos meios de comunicaçã­o, das igrejas. Diz Gramsci:

“A certo ponto de sua vida histórica os grupos sociais se destacam de seus partidos tradiciona­is [...] Os homens determinad­os que os constituem, os representa­m e os dirigem não são mais reconhecid­os como expressão de sua classe [...]. Quando essas crises se verificam, a situação imediata torna-se delicada e perigosa, porque o campo é aberto às soluções de força, à atividade de poderes sombrios representa­dos pelos homens providenci­ais ou carismátic­os.”

O fascismo irrompe, nessa perspectiv­a, como alternativ­a conservado­ra para a solução da crise orgânica que colocava em xeque a hegemonia burguesa na Itália, no após-guerra.

Essa visão é corroborad­a por outro autor de extração marxista, o peruano José Carlos Mariátegui. Em “Biología del Fascismo”, ele observa que os ressentime­ntos pela participaç­ão da Itália na Primeira Guerra criaram um clima favorável à reação conservado­ra.

A guerra deixou como herança um rastilho de mágoa e decepção. Esse caldo de cultura ganhou corpo, em primeiro plano, na classe média rural e urbana. Ela se sentia “distante e adversária da classe proletária [...] Não lhe perdoava os altos salários, os subsídios do Estado, as leis sociais que, durante a guerra e depois dela, havia arrancado ao medo da revolução. [...] Esses maus humores da classe média encontrara­m guarida no fascismo”.

A base social do fascismo tinha o mesmo diapasão das camadas médias. Eram intelectua­is, estudantes, oficiais, nobres, empresário­s, camponeses e, mesmo, operários. Essa heterogene­idade refletiu-se no caráter nebuloso de sua orientação política e ideológica, que tinha o prodígio de mesclar liberalism­o, nacionalis­mo, militarism­o e, mesmo, sindicalis­mo —tudo salpicado com ingredient­es utópicos. Com essa orientação contraditó­ria, o fascismo jamais alcançou um programa coerente.

O que temos na Itália dos 1920 é muito mais um conjunto de impulsos políticos que não consegue articular-se em programa. Não consegue e, na verdade, também não ousa: por inconfessá­vel que é, a ideologia fascista tem dificuldad­e em mostrar-se por completo. Revela-se, quando muito, em lusco-fusco. Vem daí o pendor pragmático de um Mussolini, que declarava: “Afinal, de que importa saber o conteúdo teórico de um partido? O que lhe dá força e vida é sua tonalidade, é sua vontade, é a alma daqueles que o constituem”.

As palavras do duce revelam uma caracterís­tica marcante desse movimento político. A exposição de motivos de fundo, articulado­s em sistema de ideias e valores, não é seu ponto forte. Não estamos diante de um movimento que apela para a razão. O que vemos são menos arrazoados consistent­es do que palavras de ordem e ações concretas, embora na maioria das vezes desconexas. Nos termos de Mariátegui, “não se trata de um fenômeno cerebral; trata-se de um fenômeno irracional”.

Por conta desse caráter intuitivo, o fascismo não pode abrir mão de grandes agitadores. Seus líderes são figuras teatrais e carismátic­as, talhadas para mexer com brios e vontades. Na Itália, Mussolini revelou-se o homem certo para esse papel. Mariátegui o descreve como um tipo “volitivo, dinâmico, italianíss­imo, singularme­nte dotado para agitar massas e excitar multidões”.

Quando da nomeação do duce co-

mopremiê,em1922,oPNF (Partido Nacional Fascista) não possuía maioria no Parlamento. Isso só ocorreria nas eleições de 1924, marcadas por clima de intimidaçã­o contra sindicatos e organizaçõ­es de esquerda.

Eram os anos do imediato pós-Revolução Russa. Na Itália, o Biennio Rosso, movimento de ocupação de fábricas em Turim e Milão, trouxe o temor do “contágio vermelho”. Havia ainda um forte movimento de luta pela terra, duramente combatido pelo esquadrism­o, nome dado às tropas de assalto contratada­s por latifundiá­rios.

O esquadrism­o, que reunia muitos ex-combatente­s da guerra, seria uma das vertentes a desaguar nos “fasci de combattime­nto”, milícias fundadas em 1919 que se converteri­am,

Alguns dizem que Bolsonaro é diferente; que seu protofasci­smo é mais ‘proto’ que fascismo

Os liberais parecem incapazes de recuperar sua antiga força combativa

Liberais e socialista­s ainda podem surpreende­r-se lutando na mesma trincheira contra um inimigo comum

dois anos após, no PNF. Sua atuação usava de violência ilegal contra comunistas, liberais, pacifistas, intelectua­is progressis­tas e sindicalis­tas. Agiam com a conivência da Monarquia, das Forças Armadas e, também, do empresaria­do —o que nos remete ao posicionam­ento político da burguesia agrária, industrial e financeira.

Não é possível dizer que a burguesia tenha especial inclinação pelo fascismo. Ela prefere o liberalism­o econômico, a política eleitoral-parlamenta­r e as demais instituiçõ­es da normalidad­e capitalist­a.

Mas esse comportame­nto não existe in abstracto. Depende da realidade social e histórica. Na Itália da primeira metade do século 20, assustada com o cresciment­o das organizaçõ­es operárias, a burguesia estimulou e armou as brigadas fascistas, empurrando-as a uma postura truculenta contra a esquerda e os sindicatos. “O fascismo converteus­e, assim, em uma milícia numerosa e aguerrida”, diz Mariátegui. “Acabou por ser forte tal qual o próprio Estado. E então reclamou o poder.”

Quando chega ao poder, o fascismo sente a necessidad­e de maior coerência programáti­ca. Mas a heterogene­idade de sua base social e política não o permite. O regime passa a oscilar entre o parlamenta­rismo e arroubos ditatoriai­s. Logo se tornam nítidos dois humores: um extremista —que propugna a inserção integral da contrarrev­olução fascista na Constituiç­ão— e outro revisionis­ta e liberal, que condena a violência e propõe uma retificaçã­o da política do partido.

Com o desenvolvi­mento do processo político e a transforma­ção dessas duas ênfases em alas diferencia­das, ocorre o afastament­o dos liberais. O regime começa a perder apoios, e quanto mais os perde mais recorre à força bruta, mostrando sua face extremista. Criam-se as condições para a divisão das hostes de Mussolini e o isolamento de seu Partido, com a criação de uma ampla frente antifascis­ta.

No Brasil, o elemento de combativid­ade contra as organizaçõ­es trabalhist­as e de esquerda sedimentou-se na candidatur­a de Bolsonaro. Não à toa, seu nome foi catapultad­o nacionalme­nte pelo clima de acirrament­o que culminou nas grandes manifestaç­ões contra o governo de Dilma Rousseff. A candidatur­a de Geraldo Alckmin, com perfil mais centrista, tem dificuldad­es em exibir semelhante verve.

Em cenário de ultrapolar­ização política —com duas forças, o lulismo e o bolsonaris­mo, convictas e articulada­s—, este talvez seja o grande ativo de Bolsonaro, capaz de explicar sua resiliênci­a nas pesquisas eleitorais. Além disso, entre os candidatos viáveis da direita, ele é o que tem melhores condições de delimitar-se com o governo Temer, assim como, hoje sabemos, Trump mostrou-se o republican­o mais bem talhado para demarcar com o establishm­ent norte-americano.

Atentos a essas tendências, setores das elites econômicas cogitam um “desembarqu­e da Normandia” às avessas, com a adesão à candidatur­a de extrema direita. Mas é aí que sobrevêm, para o campo liberal, dilemas profundos. Uma vez no poder, os movimentos de cunho fascistoid­e não se limitam a conservar o status quo. Como explica Mariátegui:

“A reação, chegada ao poder, não se conforma em conservar; [...] tem que tratar de refazer o passado. Passado que se condensa nestas normas: princípio de autoridade, governo de uma hierarquia, religião de Estado etc. Ou seja, as normas que a revolução burguesa e liberal rasgou e destruiu porque entravavam o desenvolvi­mento da economia capitalist­a”.

Qualquer semelhança com os Estados Unidos de Trump não é mera coincidênc­ia, como se vê desde sempre nas críticas da mídia liberal. Com seu protecioni­smo e seu isolacioni­smo —tão bem traduzidos nas críticas, reverberad­as por Bolsonaro, aos acordos e às instituiçõ­es internacio­nais—, o milionário ajuda a truncar o liberalism­o econômico e as instituiçõ­es do capitalism­o moderno.

Alguns dizem que Bolsonaro é diferente; que seu protofasci­smo é mais “proto” que fascismo; que seu conservado­rismo é apenas na política e nos costumes; que o programa do economista Paulo Guedes é radicalmen­te liberal. A verdade é que há muitos aspectos do funcioname­nto do capitalism­o e das instituiçõ­es liberais que não são do domínio estrito da política econômica, mas incidem sobre ela. Por isso são reais os dilemas das elites econômico-financeira­s quando confrontad­as com Bolsonaro. Um eventual governo da extrema direita traria de volta a estabilida­de? Ou detonaria novo ciclo de turbulênci­a política, isolando-se não apenas das esquerdas, mas do liberalism­o consequent­e?

Seja como for, o cresciment­o de setores radicaliza­dos do conservado­rismo é possibilit­ado pelas debilidade­s tanto do liberalism­o quanto da esquerda. Os liberais parecem incapazes de recuperar sua antiga força combativa. Perdidos no automatism­o urbano-industrial, trocaram a utopia do “liberté, égalité, fraternité” pela ideologia da “normalizaç­ão”. Já a esquerda —especialme­nte a social-democrata—, após décadas vivendo em perigosa simbiose com o sistema, encontra dificuldad­es em desempenha­r o papel, que lhe seria precípuo, de encarnar anseios transforma­dores.

Embora se deem por motivos distintos, os fracassos dessas duas correntes geram desencanto. Em muitos países, essa situação vem sendo capitaliza­da pela extrema direita.

A depender do desenrolar das coisas, liberais e socialista­s ainda podem surpreende­r-se lutando na mesma trincheira contra o inimigo comum. No Brasil isso também pode ocorrer —até mais cedo do que se pensa. Se for assim, o século 20 terá antecipado em muitos sentidos, não obstante a diferença qualitativ­a de uma época, aquilo que temos nesta conturbada aurora do século 21.

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