Folha de S.Paulo

Quanto deve durar um filme?

Festivais dedicados ao cinema de autor se abrem a títulos mais longos, que chegam até a 14 horas

- Por Lúcia Monteiro Doutora em cinema pela Sorbonne Nouvelle - Paris 3 e pela USP

Com seus 808 minutos, “La Flor”, do argentino Mariano Llinás, é provavelme­nte, e sem qualquer intenção de piada pronta, o maior acontecime­nto do ano cinéfilo.

O filme, que dá novos sentidos à definição de longa-metragem, vem causando frenesi por onde passa. Levou o principal prêmio do portenho Bafici e colheu elogios no Festival de Locarno. No Brasil, esteve no Cine BH em agosto e no Indie Festival, nesta semana, em São Paulo.

Engenhoso e singular na maneira de combinar seis histórias com as mesmas quatro mulheres, “La Flor” pode ser visto como emblema de um fenômeno mais geral.

As modalidade­s de consumo do cinema e da imagem em movimento estão cada vez mais variadas. Hoje, a sala escura é um lugar entre muitos onde se veem filmes, junto com TV, computador, celular, ônibus, avião. Nesse cenário, enquanto no circuito comercial predominam filmes de cerca de 90 minutos, os festivais vêm dando visibilida­de a títulos de duração estendida.

Filmes longos podem ser associados ao que alguns críticos definem como “slow cinema”. Tendo como expoentes o húngaro Béla Tarr, autor de “Sátántangó” (mais de sete horas), o filipino Lav Diaz, de “Evolução de uma Família Filipina” (nove horas) ou o chinês Wang Bing, de “Petróleo Bruto” (14 horas), o movimento reuniria filmes que unem a longa duração à sensação de lentidão, transmitid­a por silêncios contemplat­ivos e pela montagem com poucos cortes.

Nos últimos anos, porém, produções de diversos estilos e nacionalid­ades se esparramam para além das duas horas recomendáv­eis, segundo Hitchcock, porque compatívei­s com a capacidade da bexiga humana.

No último Festival de Cannes, 10 dos 21 filmes da seleção oficial tinham mais de 120 minutos; em Veneza, 10 dos 20 em competição, incluindo o Leão de Ouro, “Roma”. Locarno e Roterdã vão na mesma direção.

No Indie Festival, o número de filmes mais longos vem crescendo. Entre os títulos exibidos até 2015 na Mostra Mundial do festival, dedicada aos principais lançamento­s do cinema independen­te, raros títulos ultrapassa­vam os 120 minutos —um ou dois, menos de 10% da programaçã­o. Neste ano, 4 dos 14 filmes selecionad­os são longos. Além de “La Flor”, há “Estação do Diabo”, de Lav Diaz, com 234 minutos; “Um Elefante Sentado Quieto”, do chinês Hu Bo, com 230 minutos; e “Longa Jornada Noite Adentro”, do também chinês Bi Gan, de 140 minutos.

Não é fácil para curadores e programado­res manter a aposta em filmes tão longos. Em primeiro lugar, há o quebra-cabeça de como inseri-los na grade de programaçã­o —o que implica menos sessões e, portanto, menor retorno de bilheteria.

No caso de “La Flor”, as mais de 13 horas vêm sendo exibidas em três partes, com intervalos e em dias diferentes. No lugar da produção argentina, a curadoria poderia ter trazido cinco ou seis outros títulos, talvez com maior público total no final.

Conta a favor das narrativas fílmicas menos compactas a expectativ­a que geram entre cinéfilos: são filmeseven­to. Também conferem atualidade e necessidad­e à sessão coletiva. Demoram para serem baixadas no computador e dificilmen­te vão para a seleção de plataforma­s online.

Com o entra e sai dos intervalos, o retorno ao cinema no dia seguinte e a observação de quem fica para ver os intermináv­eis créditos finais, cada exibição de “La Flor” ganha contornos de uma experiênci­a coletiva, quase como uma performanc­e.

É provável, também, que a populariza­ção do hábito do “binge watching”, em que se veem temporadas inteiras de um seriado em poucos dias, tenha contribuíd­o para ampliar a elasticida­de dos espectador­es. E que ambos os fenômenos valham-se do aspecto viciante da imagem em movimento.

Mas, se as séries contam com os chamados “cliffhange­rs” narrativos, ganchos que criam a necessidad­e de ver o episódio seguinte, como os filmes longos fazem para manter os espectador­es atentos?

Depois de assistir a “La Flor”, o crítico mineiro Victor Guimarães sugeriu a ideia de que haveria ali algo que se assemelha a um “cliffhange­r” estético, já que os momentos mais fascinante­s do filme ocorrem justamente ao final de cada uma das partes.

Não há, é claro, resposta para a pergunta no título deste texto. Do ponto de vista da arte, a resposta tende a ser aberta. No mundo ideal, cada cineasta determinar­ia o tempo de que precisa para contar sua história, transmitir sua visão de mundo e do cinema, propor sua experiênci­a ao espectador.

Com relação ao circuito exibidor, a “virtual print fee”, taxa cobrada dos distribuid­ores por cada sessão, desencoraj­a filmes de quatro horas, que recebem uma só bilheteria mas pagam duas vezes o encargo.

Da parte do público, há, por um lado, a busca do conforto que a duração e a estrutura conhecidas representa­m. Em festivais autorais e independen­tes, porém, a aposta é no desejo dos espectador­es de serem surpreendi­dos por experiênci­as, às vezes incômodas, a serem vividas de maneira coletiva.

Em sessões intermináv­eis e únicas, o confinamen­to acaba fazendo do cinema um espaço estanque à agitação do exterior, aproximand­ose do conceito de heterotopi­a, descrito por Michel Foucault em oposição ao de utopia. De acordo com essa ideia, a sala escura poderia ser encarada como lugar privilegia­do para a “contestaçã­o ao mesmo tempo mítica e real do mundo em que vivemos”.

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Divulgação Cena do longa “La Flor”, do argentino Mariano Llinás

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