Folha de S.Paulo

Maiores vítimas, negros criam lobby pró-arma de fogo nos EUA

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Nos Estados Unidos, 3 em cada 4 pessoas são brancas. Ainda assim, homens negros têm 14 vezes mais probabilid­ade de serem mortos por arma de fogo do que os brancos.

Em números absolutos, é uma média de 27 homicídios a mais por 100 mil habitantes entre os homens negros em relação aos brancos anualmente.

E o número pode ser ainda mais alto a depender do estado, segundo um estudo que analisou dados de 2008 a 2016 em todo o país.

Nada que surpreenda Philip Smith. Ele é o presidente da Naaga (Associação Nacional Afro-Americana de Armas), criada em 2015 com o objetivo de representa­r a comunidade afro-americana.

Lá, são oferecidos treinament­os para ajudar negros a usar armas, em defesa do que a associação descreve como “direito alienável à autodefesa para afro-americanos”.

“Historicam­ente, não temos voz na sociedade. Então tivemos de sair e desenvolve­r nossa própria organizaçã­o e falar sobre nossos valores”, afirma.

Os membros também se reúnem para discutir temas que afetam a comunidade. Um dos mais recorrente­s são as mortes de negros por policiais.

Nos EUA, grupos como a NRA (o lobby pró-armas) dizem que a segunda emenda da Constituiç­ão dá ao indivíduo o direito de manter e de portar uma arma de fogo.

O número estimado de armas (registrada­s e ilegais) entre os cidadãos varia de 265 milhões a quase 400 milhões —o país tem cerca de 328 milhões de habitantes.

Em 2016, houve 14.415 homicídios com uso de armas nos Estados Unidos, um aumento de 31,7% em relação a dois anos antes.

Ao longo de 2018, alguns casos chamaram a atenção. Em setembro, Botham Jean, que trabalhava na consultori­a PwC, estava em seu próprio apartament­o quando a policial Amber Guyger abriu a porta, entrou no local e atirou duas vezes nele.

Guyger, branca, diz ter achado que estava entrando em sua casa e que pensou que o vizinho era um ladrão. Jean, negro, morreu. Ela foi demitida do departamen­to de Dallas e indiciada por homicídio.

“É uma tendência que não acabou. Eles [os policiais] têm um estereótip­o de que os negros agem de uma forma. Os policiais fazem o seu trabalho, mas há um nível de responsabi­lidade na profissão. Você não pode se esconder atrás de um distintivo”, afirma Smith.

Em novembro, na noite de Ação de Graças, outro exemplo. Desta vez, no Alabama. Emantic Bradford Jr., 21, estava fazendo compras em um shopping quando tiros foram ouvidos. Ele tentou ajudar as pessoas que estavam no local, mas um policial à paisana o confundiu com o atirador. O jovem, negro, foi baleado três vezes nas costas e morreu.

Ele portava uma arma, para a qual tinha licença. Era um caso raro. Historicam­ente, a taxa de posse de arma por negros é inferior à de brancos. Estudo do Pew Research Center publicado em 2017 mostra que 36% dos brancos tinham uma arma, contra 24% dos negros.

Isso acontece porque, para os negros, ter uma licença para arma é mais difícil do que para os brancos. Em sua maioria, eles vivem em cidades grandes, que costumam ter regras mais rígidas para porte de armas —nas zonas rurais, as leis são mais flexíveis.

Mas não é o único motivo, afirma David Hemenway, diretor do centro de pesquisa para o controle de ferimentos de Harvard.

“Tem a ver com racismo implícito. Os negros são discrimina­dos de muitas formas. Eles têm uma qualidade de educação ruim quando jovens, vivem em áreas não tão boas, têm menos oportunida­de de emprego. São mais propensos a virarem vítimas de violência”, afirma ele.

No passado, os negros eram proibidos de portar armas, diz Clayton Cramer, professor de história do College of Western Idaho e autor de um artigo sobre o tema, “The Racist Roots of Gun Control” (As raízes racistas do controle de armas).

Em 1751, por exemplo, um código na Louisiana exigia que colonos impedissem negros, à força, se necessário, de portar qualquer objeto que pudesse ser usado como arma, como pedaços de pau.

Mesmo depois do fim da escravidão em 1865, diversos, estados americanos continuara­m proibindo ex-escravos de terem armas.

Em 1968, mesmo ano em que o pastor Martin Luther King Jr. foi assassinad­o, o presidente Lyndon Johnson assinou uma lei de controle de armas que tinha como intenção implícita desarmar o grupo político Panteras Negras e outras organizaçõ­es ativistas negras semelhante­s.

Luther King tentou, ele mesmo, conseguir uma arma, depois de um ataque contra sua casa, em 1956, mas a polícia do Alabama negou a solicitaçã­o.

O grande número de mortes de negros por armas de fogo também tem gerado outro tipo de discussão no país. No ano passado, um ataque a tiros em uma escola de Parkland (Flórida) deixou 17 mortos, entre estudantes e funcionári­os, e vários feridos.

Em meio à comoção gerada, um grupo de estudantes negros protestou contra o que consideram pouca atenção às mortes de afro-americanos.

“Quando uma mulher negra morre, um filho negro morre, não temos essa reação do outro lado. Mas quando algo acontece em Parkland, ah meu Deus!”, diz Smith, da Naaga. “Onde está a raiva, onde está a preocupaçã­o? Eles não se importam. Nós sofremos com isso todos os dias.”

Para Cramer, há uma reação maior dependendo da etnia da vítima. “Em Parkland, as vítimas eram estudantes brancos de classe média. Os negros morrem em Chicago, Nova York e Los Angeles. São como os outros, mas sem essa comoção.”

A solução para eliminar o problema está no diálogo, defende Smith. “Estamos falando de desigualda­de nos EUA, de estereótip­os. A América tem que sentar e resolver o problema racial.”

“Historicam­ente, não temos voz na sociedade. Então tivemos de sair e desenvolve­r nossa própria organizaçã­o e falar sobre nossos valores Philip Smith presidente da Naaga (Associação Nacional Afro-Americana de Armas)

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