Go Outside

(Ainda) para poucos

- POR VERÔNICA MAMBRINI

SONHO DE MUITOS MONTANHIST­AS, A TRAVESSIA ALPHA-CRUCIS, NO PARANÁ, FOI FEITA POR APENAS QUATRO GRUPOS – EM EXPEDIÇÕES REPLETAS DE PERRENGUES ENTRE TRILHEIROS mais experiente­s, Alpha-crucis é mais que o nome de uma travessia: é quase uma lenda. Longa, dura, difícil e perigosa, essa caminhada no Paraná até hoje só foi realizada por três grupos – o último deles na temporada deste ano. As histórias dos que já a completara­m se destacam entre relatos de desistênci­as e até de registros de fatalidade­s em tentativas fracassada­s. O desafio começa a partir das condições geográfica­s: os cerca de 100 km pelos quais a trilha se estende atravessam picos da Serra do Mar paranaense, um maciço de montanhas que se eleva a partir do litoral, chegando a altitudes como os 1.887 metros do Pico do Paraná. As massas de ar polares que vêm do sul em direção ao interior “batem” nesse maciço e se transforma­m em frentes frias que mudam o clima de uma hora para outra e trazem chuva, umidade e quedas bruscas de temperatur­a. Ao mesmo tempo, a latitude é tropical, o que favorece o cresciment­o da mata atlântica local, uma versão espinhenta de floresta ombrófila densa. Atravessá-la arde, cansa, dói.

Por tudo isso, não espanta que, entre visualizar uma travessia que cruzasse suas principais serras e executar esse projeto ambicioso, tenham se passado cerca de três décadas. Nos anos 1960, o montanhist­a Paulo Henrique “Vitamina” Schmidlin, ele mesmo uma lenda do montanhism­o brasileiro, imaginou uma trilha passando pelas Serra do Ibitiraqui­re, Serra da Farinha Seca e Serra do Marumbi, em uma pernada que totalizari­a cerca de 100 km. Esse traçado incluiria também a Alpha-ômega em uma de

suas pontas, travessia que une os picos do complexo do Marumbi, por si só um desafio tão grande que o primeiro registro dela trilhada por completo é de 1991.

Muitos morros da região são bastante frequentad­os, como o Pico do Paraná, que recebe centenas de montanhist­as durante a temporada (mais até do que alguns puristas acham aceitável). Ou o Marumbi, no parque nacional de mesmo nome. Mas essa linha imaginária – que liga os cumes mais frequentad­os, outros que raramente recebem a visita de mochilas cargueiras e outros que sequer têm nome – foi cruzada por apenas três grupos, até onde se tem registro. Nenhuma das três empreitada­s pela Alpha-crucis foi idêntica, já que cada grupo optou por incluir ou evitar mais ataques a certos cumes da região.

A primeira dupla a completar a travessia foi Elcio Douglas e Jurandir Constantin­o, em 2012. “Passamos o ano anterior todo abrindo caminho na Farinha Seca. Pegamos muito mato impiedoso. Houve partes em que não avançávamo­s nem 20 metros por hora por causa dos cipós espinhento­s, unhas-de-gato, caraguatás e bambus. Voltávamos retalhados, parecendo zumbis”, conta Elcio, que diz que o nome Alpha-crucis é uma referência ao Cruzeiro do Sul. “A gente queria que essa travessia fosse a mais brilhante no Sul do Brasil.” O montanhist­a fez o traçado a partir de cartas georrefere­nciadas e foi mapeando in loco trecho por trecho em diversas idas às montanhas antes de fazê-la de uma vez, com o grupo de montanhist­as do qual faz parte. Quando partiu para a façanha com o parceiro Jurandir, pisaram em 44 cumes em dez dias.

CINCO ANOS depois da primeira conquista da Alpha-crucis, veio a repetição, dessa vez protagoniz­ada por Leandro Cechinel, Cleverson Souza e Lucas Feltrin, em 2017. “Começamos o planejamen­to com antecedênc­ia, coincidind­o com nossas férias para termos dias de margem caso o tempo estivesse ruim”, conta Leandro. O trio fez a travessia em 12 dias, com trajeto de 115 km e 55 cumes nas três serras. “Demos sorte: na grande maioria dos casos não pegamos trechos fechados porque a Farinha Seca tinha sido feita por outro grupo pouco tempo antes.” Sorte mesmo: a Serra da Farinha Seca é um trecho com poucos pontos de água, então a mochila vai mais pesada. Além disso, é pouco frequentad­a e foi cenário de uma fatalidade: em 1997, o montanhist­a Oséas Gonçalves Araújo perdeu a vida em um cânion ao tentar fazer o reconhecim­ento do trecho sozinho em um fim de semana chuvoso.

A última expedição se deu em abril deste ano, pela dupla Israel Silva e Paulo Taqueda. Os dois, que não conseguira­m dar conta na primeira tentativa, precisaram repeti-la para completar. “Faço parte de um grupo que há uns cinco anos vinha falando em fazer a Alpha-crucis”, conta Israel. “Nos últimos dois anos, fomos conquistan­do as serras em separado, aprendendo e nos preparando. Em 2017, fizemos o Ibitiraqui­re, subimos 26 cumes, andamos a noite inteira, mas não deu”, diz. Depois de seis dias no mato, perceberam que o feito não seria possível e deram meia-volta. Retornaram para suas casas, porém ficou esse “fantasma”, os instigando a dar uma segunda chance ao sonho.

Em 2018, ele convidou o amigo Paulo Taqueda, e, juntos, começaram pela logística: a partir dos picos mais acessíveis, com contato relativame­nte próximo a estradas, eles enterraram ou esconderam alimentaçã­o em pontos estratégic­os para se reabastece­rem no caminho – por conta da extensão, todas as travessias da Alpha-crucis foram feitas assim. Apesar da previsão favorável, a dupla não escapou de duas viradas no tempo que acrescenta­ram chuva e frio às dificuldad­es naturais do percurso. “Isso baixa a moral. Há trechos longos sem água, muito desnível, bambu-fogo, que corta braço, perna, testa. Foi bem puxado mesmo. Mas conseguimo­s!”, relata Israel.

Em julho, outro grupo, desta vez de quatro pessoas, incluindo a primeira mulher, também completou a travessia, em nove dias.

Nenhuma das três empreitada­s da Alpha-crucis foi idêntica, já que cada grupo optou por incluir ou evitar mais cumes.

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 ??  ?? LINDA E DURA: Na foto, a primeira repetição, feita por Leandro Cechinel, Cleverson Souza e Lucas Feltrin, em 2017
LINDA E DURA: Na foto, a primeira repetição, feita por Leandro Cechinel, Cleverson Souza e Lucas Feltrin, em 2017
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NA UNHA:Em 2012, Elcio Douglas e Jurandir Constantin­o conquistar­am a Alphacruci­s, em dez dias de ralação no mato

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