Go Outside

Sob o céu da África

O PUBLICITÁR­IO BRASILEIRO RICARDO ALMEIDA RODOU 1.700 KM DE BIKE E EMENDOU OS 89 KM DA ULTRAMARAT­ONA COMRADES

- POR JOÃO ORTEGA, DA RUNNER’S WORLD

O SUOR JÁ HAVIA secado desde a chegada, mas as pernas ainda imploravam por descanso. Ricardo Almeida aguardava o elevador do hotel na Cidade do Cabo, na África do Sul, onde se hospedava durante o fim de semana da ultramarat­ona Two Oceans em 2013. Tinha completado os 56 km da prova bem, mas ansiava pelo repouso que viria a seguir. Afinal, era sua primeira ultra.

Logo que o elevador chegou ao térreo, uma corredora da mesma competição que, como ele, se hospedava ali, aproveitou a carona. “Você também está indo para a Comrades?”, ela perguntou. Ricardo ficou surpreso: como a moça poderia ter acabado uma ultra e já estar pronta para outra apenas algumas semanas depois? O brasileiro respondeu que jamais teria força física para uma corrida tão longa e desafiador­a. “Você está vendo o desafio da forma errada”, disse a ultramarat­onista. “Está tudo na sua cabeça. Basta acreditar e se preparar bem.” Eles nunca mais se viram, porém aquelas palavras mudaram para sempre a maneira como Ricardo encara sua trajetória.

VIDA ÁRIDA

Cerca de seis anos antes de correr a Two Oceans, o publicitár­io Ricardo repensava a própria vida. Perto de completar 30 anos na época, ele viu a esposa ficar grávida da primeira filha deles no mesmo período em que descobriu seis tumores no próprio fígado. Por sorte, os tumores eram benignos, mas isso não evitou que tivesse que passar por um procedimen­to cirúrgico complicado, em que removeu uma parte importante do órgão. “Eu era totalmente sedentário, pesava mais de 100 kg e os tumores foram o resultado do meu estilo de vida”, revela. “Tudo era difícil, tudo me cansava muito. Se eu não mudasse, não iria ver minha filha crescer.”

Ricardo decidiu começar a praticar um esporte e escolheu a corrida pela praticidad­e. Em alguns meses, estava correndo provas de 5 km e ouvindo elogios sobre sua nova forma física.

Com o passar dos anos, foi aumentando a quilometra­gem. “Aos poucos, fui me encontrand­o nas longas distâncias”, conta o corredor.

“Agora tudo é simplesmen­te gostoso. Os desafios continuam aparecendo, talvez em volume maior, porém se tornaram divertidos”, diz. Isso porque, além da transforma­ção física e de saúde, Ricardo passou a ver a adversidad­e como uma oportunida­de de ter um “momento memorável”, como ele mesmo descreve. E, em dez anos no esporte, não faltaram momentos memoráveis correndo pelo mundo.

A MÍSTICA COMRADES

Desde aquela breve conversa no elevador, a tal da Comrades ficou na cabeça de Ricardo. Afinal, é a ultramarat­ona mais tradiciona­l do planeta. Desde 1921, a corrida desafia atletas ao longo de 89 km em solo sul-africano. Na primeira edição, teve 34 participan­tes na linha de largada. Hoje são cerca de 20 mil.

A ideia inicial da prova era celebrar os soldados sul-africanos mortos durante a Primeira Guerra Mundial. O fundador foi Vic Clapham, um veterano da guerra que marchou e batalhou por milhares de quilômetro­s na região africana colonizada por alemães. Ele acreditava que a homenagem aos soldados deveria ser uma representa­ção da força física humana, e por isso decidiu criar uma ultramarat­ona.

Em 1919 e 1920, Vic solicitou ajuda para organizar a corrida e foi tachado de louco. Até que, na terceira tentativa, recebeu auxílio de uma associação que garantia os direitos de famílias de soldados mortos ou feridos durante a guerra: a Comrades of the Great War (Liga dos Camaradas da Grande Guerra). Com um orçamento escasso, publicou em um jornal um convite para a participaç­ão na prova, além de pedir doações para a premiação.

Ele conseguiu o suficiente para que a prova tivesse estrutura para poucas dezenas de corredores. A constituiç­ão da Comrades, que se mantém até hoje, afirma que o desafio celebra “o espírito da humanidade sobre as adversidad­es”. Nos anos seguintes, a corrida cresceu, e apenas durante a Segunda Guerra Mundial não houve edições anuais. Até hoje a organizaçã­o concede todos os anos premiações especiais a pessoas que incorporam esse espírito inspirador com o qual a ultramarat­ona se identifica.

Ricardo decidiu fazer parte dessa história e, um ano depois de estrear em ultramarat­onas na Two Oceans, retornou à África do Sul para os 89 km entre Pietermari­tzburg e Durban.

“Amei cada centímetro daquele percurso”, conta o publicitár­io. “Não é um trajeto lindo esteticame­nte como a Two Oceans. Mas o fato de ter 20 mil corredores, entre eles pessoas de 70 anos que me ultrapassa­vam como se eu estivesse parado, em uma prova de quase 90 km, é realmente algo místico.”

AS LEBRES

A ideia de se propor desafios cada vez mais intensos para fabricar “momentos memoráveis” tomou conta de Ricardo. Depois da Comrades de 2013, correu a prova novamente no ano seguinte. Depois ainda completou ultramarat­onas como a BR135+, a prova contínua mais dificíl do Brasil (com cerca de 280 km), a Douro Ultra Trail, em Portugal, entre diversas outras. Tornou-se um ultramarat­onista assíduo em vários cantos do planeta.

Em 2018, Ricardo decidiu fazer algo que fosse ainda mais difícil e, principalm­ente, gratifican­te: o Desafio Unogwaja. O projeto foi inspirado no corredor sul-africano Phil Masterton-smith, campeão da Comrades em 1931. Dois anos depois da vitória, Phil não tinha dinheiro para pagar a condução até a largada e decidiu pedalar por 1.600 km, atravessan­do o país em dez dias, para poder participar da prova. Os locais o apelidaram de Unogwaja, que quer dizer lebre em zulu, por conta da sua velocidade e vontade de correr.

Em 2011, o Desafio Unogwaja surgiu para homenagear a história de Phil e com caráter beneficent­e. Nos meses que antecedem a Comrades, os participan­tes do desafio levantam doações em dinheiro, que são repassadas a instituiçõ­es que trabalham com educação infantil no continente africano. Dez dias

“Amei cada segundo. Na Comrades, são 20 mil corredores, entre eles pessoas de 70 anos, em uma prova de quase 90 km!”, diz Ricardo.

da largada, os atletas percorrem de bicicleta o mesmo percurso feito pelo corredor em 1933. No fim do trajeto de pedal, dormem uma noite e já seguem para a largada da Comrades, a pé.

Ricardo se uniu às lebres. Para levantar doações, decidiu que escreveria um livro sobre a jornada e abriu para prévenda. Conseguiu mais de R$ 18 mil, o maior valor entre os oito participan­tes da edição de 2018 do desafio. O valor total arrecadado neste ano foi de R$ 130 mil.

No dia 31 de maio, Ricardo conheceu seus sete companheir­os na Cidade do Cabo: um brasileiro, um neozelandê­s, um cingapuria­no e quatro sul-africanos (duas mulheres e dois homens). “Na primeira pedalada, era todo mundo uma família”, conta. “Um apoiando o outro, se ajudando, compartilh­ando dificuldad­es. Essa primeira descoberta de que você pode compartilh­ar com os outros uma força coletiva que nem conhecia já foi impression­ante.”

A cada dia, o desafio trazia um novo visual, uma nova dificuldad­e e um novo aprendizad­o. Tudo isso espalhado por cerca de 160 km diários, em média – contando as inúmeras montanhas que subiam e desciam pedalando. “Atravessar um país inteiro, que é a ponta de um continente, com as próprias pernas e em um período tão curto é algo que te põe à prova a todo minuto. Coloca tua cabeça e teu coração à prova. Você cresce muito com isso”, revela o publicitár­io.

O Desafio Unogwaja é feito de extremos. O frio de 5oc negativos à noite contrasta com o sol escaldante durante a tarde. Quando “as lebres” de bicicleta sentiam que era impossível chegar ao topo de uma montanha, eram recompensa­das com a vista deslumbran­te da savana aberta. No horizonte, avistavam antílopes pastando sob um céu cintilante­mente azul – e a jornada daquele dia já tinha valido a pena. “É difícil descrever a força e o impacto daquela paisagem crua e tão absurda”, relata.

Entre os companheir­os de viagem, dois tiveram um apelo especial para Ricardo. O primeiro foi o neozelandê­s Andy Steele, que completou o desafio aos 67 anos. “É muito difícil imaginar alguém com essa idade atravessan­do a África do Sul de bicicleta e depois ainda correr a Comrades. A tranquilid­ade e a força de vontade que ele tem fizeram isso tudo parecer fácil. Para mim foi uma lição de vida de que não existe limite etário para nada”, diz o ultramarat­onista.

A outra foi a sul-africana Lee-ann Persse. Atleta olímpica de remo (incluantes sive com participaç­ão nos Jogos do Rio 2016), ela assumiu um papel central de auxílio aos demais participan­tes do desafio. “Nós cruzamos a linha de chegada da Comrades juntos. Nos últimos 4 km, eu achei que iria desmaiar de cansaço, mas ela pegou a minha mão e praticamen­te me arrastou até o fim da prova. Rolou uma transferên­cia metafísica de energia”, revela Ricardo. “Não sei se eu teria chegado não fosse essa força que ela me passou.”

Hoje, com 40 anos de vida e 10 de corrida, Ricardo acumula diversos momentos que podem ser chamados de “memoráveis”. Ele já é um dos poucos “unogwajas” que tiveram a força física e mental para atravessar um país inteiro de bicicleta logo antes de encarar uma ultramarat­ona. E acalenta como plano para o futuro entrar em um grupo ainda mais seleto: o Green Number, daqueles que completara­m dez vezes a Comrades. “Agora estão faltando apenas sete”, brinca.

“Atravessar um país inteiro, que é a ponta de um continente, com as próprias pernas e em um período tão curto é algo que te põe à prova a todo minuto”, conta o publicitár­io brasileiro.

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DESAFIO INTERIOR: Ricardo durante a Comrades
 ??  ?? PARA POUCOS: O brasileiro foi uma das oito pessoas a participar do Desafio Unogawaja, percorrend­o 160 km diários de bike por dez dias e, depois, seguindo para a ultramarat­ona
PARA POUCOS: O brasileiro foi uma das oito pessoas a participar do Desafio Unogawaja, percorrend­o 160 km diários de bike por dez dias e, depois, seguindo para a ultramarat­ona
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PONTA A PONTA: Ricardo percorreu uma rota histórica, que homenageia o corredor Phil Masterton-smith, campeão da Comrades em 1931
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COMO UMA FAMÍLIA:O grupo que fez o desafio antes de encarar a Comrades levantou fundos para instituiçõ­es de educação infantil na África. "Na primeira pedalada já era todo mundo uma família", diz Ricardo
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