UM SKATISTA EM OUTROS PICOS
Grande nome do skate brasileiro, Rony Gomes aproveita uma viagem à Nova Zelândia para ir além dos bowls da capital, Wellington, e se joga por alguma das paisagens mais surreais do surpreendente país
A cena é de arrepiar.
Skate na mão, o paulistano Rony Gomes chega caminhando a passos lentos até a beirada do bowl de Waitangi Park, construído diante da baía da cidade de Wellington. O jovem ainda estava exausto devido ao fuso horário de 15 horas a mais da Nova Zelândia em relação a São Paulo – de onde havia chegado poucas horas antes. Ao encontrar três ou quatro skatistas locais que estavam na área, cumprimentou a galera, comentou algo em inglês sobre a bowl e apoiou o tail do skate na borda para seu primeiro drop. Brincou por alguns minutos, lançou uns aéreos e mandou logo um heelflip, girando com presteza o skate no ar. Quando parou, Rony foi surpreendido por aplausos sinceros do grupo de desconhecidos. Humilde, agradeceu e seguiu por ali, trocando ideias e se revezando nas manobras com os novos colegas. Os donos do pedaço não sabiam, mas aquele sujeito franzino de 26 anos,
1,70 metro, fala lenta e olhar tranquilo por trás de um par de óculos é um legítimo representante do Brazilian Storm do skate – como é chamada a talentosíssima safra de atletas que dominam bowls e pistas em vários eventos mundiais.
Campeão mundial de skate vertical, vice na Mega-rampa e finalista de vários X-games, Ronaldo “Rony” Gomes da Silva Filho recebeu as boas-vindas discretas de um grupo de anônimos que também não fazia feio na pista. Ainda que distante da realidade do Brasil, a Nova Zelândia vê despontar cada vez mais nomes no skate nacional – e, daquele encontro, só podiam sair manobras bonitas de se ver. “Sempre tive vontade de andar no bowl de Wellington, que já conhecia de vídeos que assisti de campeonatos como o Bowl-a-rama”, conta Rony. Em março deste ano, aquela mesma pista de Wellington sediou o Bowlzilla, tradicional evento em que se alinharam revelações nacionais, como Bowman Hansen e Shaun Boucher.
Desta vez, ali em meio aos recém-amigos, Rony não estava viajando para torneio algum: ele era convidado do projeto Terramundi Creators – Nova Zelândia, da operadora de viagens Terramundi, que leva personalidades respeitadas para conhecer e divulgar a agência e o país de destino. Mesmo sem competir, o skatista realizou, de quebra, o desejo de dar seus aéreos lindos naquele bowl de respeito. “Where are you from?”, perguntou um dos moleques para Rony. A resposta foi uma surpresa. “Brasil? Eu também sou brasileiro”, devolveu Dereck de Souza, rapaz de 21 anos que já tinha mostrado, em ação, que manjava muito de andar de skate. Com mãe
brasileira e padrasto kiwi, Dereck vive na Nova Zelândia há nove anos, estuda moda e começa a brilhar também como um precoce estilista da grife de skate Paul Anthony, que criou com um amigo.
A simpatia do “sangue bom” Dereck o catapultou automaticamente ao posto de guia, amigo local e anfitrião de Rony na cena do skate de Wellington. Naquela mesma tarde, a dupla seguiria para o halfpipe de Karori, onde o veterano local Craig Harris, 55 anos, amigo de Dereck, emprestou joelheiras para Rony. “Já tinha assistido às manobras do Rony no torneio Vert Attack da Europa, ele manda muito bem”, comentou Harris, figuraça local com pinta de Eddie Vedder. Ele e os curiosos de plantão flagraram um improviso impactante de Rony e Dereck juntos no half, dando um double hillflip. Ainda mais chocante foi o giro de 540 graus no ar que Rony deu no fim. “O legal de ver gente de fora andando nas nossas pistas é que você se inspira a melhorar, para tentar fazer igual”, diz Dereck, sem esconder o orgulho de compartilhar aquela tarde com o novo brother brasileiro.
Os encontros de Rony logo nas primeiras horas da sua estreia na Nova Zelândia eram só um aperitivo do que estava por vir, desde Wellington até seu destino final, a região do Mount Cook. Que a comunidade de skatistas é muito aberta e acolhedora a outros integrantes da irmandade mundial do esporte, Rony já sabia. Mais legal foi perceber também, ao longo dos dias seguintes, como os moradores do país adoram receber os forasteiros. Em Wellington, capital nacional habitada por 400 mil pessoas – e com uma expressiva população de jovens universitários –, o paulistano conferiu programas que os locais curtem. Tomou umas na cervejaria artesanal Garage Project (garageproject. co.nz), que funciona em um antigo posto de gasolina cheio de história, e também nos bares, restaurantes e cafés da pulsante rua Cuba, que nos últimos anos se transformou na mais legal da Ilha Sul (e, provavelmente, de toda a nação).
Como não podia deixar de ser, algumas das explorações mais divertidas foram sobre as rodinhas do skate. Especialmente no pedaço cênico de Wellington por excelência: à beira das águas azuis da baía de Fitzroy, cercada por montanhas verdes que despencam no mar. Cheia de personalidade, Wellington é repleta de obras de grafite nos muros e de instalações artísticas, como a passarela de pedestres City-to-sea. Rony pôde ziguezaguear praticando street skate, vertente do esporte em que se usa os obstáculos urbanos como corrimãos, pelo bulevar – e parando para brincar no palco do Bowlzilla com seus novos manos kiwis sempre que sentia saudades de fazer suas cinematográficas manobras.
MAS RONY GOMES tinha planos de ir além dos limites do skate nessa sua primeira jornada na Nova Zelândia. Fascinado por todo tipo de esporte ao ar livre desde a infância no bairro paulistano da Mooca, incluindo surf e, claro, futebol (ele sonhava ser jogador do Corinthians), o skatista queria encarar trilhas a pé e de bike em seus dias nesse pequeno país da Oceania dividido em duas ilhas. Focou na Ilha Sul, famosa pela natureza exuberante e
Em Wellington, Rony mandou aéreos no bowl da cidade e foi aplaudido por locais, que não sabiam que ali estava um dos maiores nomes do skate vertical.
preservada. Mais especificamente, na mítica área do Mount Cook, na região de Christchurch e Canterbury. Com 3.755 metros, a maior montanha da Australásia não possui apenas um visual fenomenal, mas também é carregada de história – foi ali o campo de treinos do neozelandês que se tornaria o primeiro homem branco a escalar o Everest. Edmund Hillary amava o Mount Cook. Antes de entrar para o panteão dos maiores montanhistas de todos os tempos, ao chegar ao ponto mais alto da Terra em 1953, ao lado do sherpa nepalês Tenzing Norgay, Hillary havia celebrado o feito de encarar a temida face sul do Cook em 1948. Nativo de Auckland – maior cidade do país e base dos voos internacionais que chegam à Nova Zelândia –, Hillary fez do Cook sua escola para a empreitada que o transformaria em herói nacional. Não por acaso, em 1992, ao saber que seria homenageado em vida com seu rosto impresso na nota de 5 dólares neozelandeses, Hillary exigiu que a montanha de fundo não fosse o Everest – mas, sim, o Cook.
Estivesse vivo, Hillary se orgulharia de ver Rony e outros jovens descobrindo as maravilhas do universo outdoor do seu território. Essa era, aliás, a meta do Sir Edmund Hillary Outdoor Pursuits Centre, instituição de caridade da qual foi patrono por 35 anos. Por conta do trabalho da organização, o acesso ao entorno da montanha mais mítica da Nova Zelândia virou algo incrivelmente fácil. Diferentemente do que acontece com os picos mais altos de vários países – como o da Neblina, no caso do Brasil –, o Cook brilha como a estrela de um parque nacional onde se chega segura e rapidamente por estradas cênicas e bem pavimentadas.
Depois de curtir a urbanidade jovem de Wellington, cidade que fica na ponta sul da Ilha Norte, Rony embarcou – de mochila e skate sempre a tiracolo – em um voo de uma hora para Timaru, no litoral de Christchurch/ Canterbury, na Ilha Sul. Seguiu-se então uma linda road trip de 2h30, que cruzou o país de leste a oeste, até a Mount Cook Village, povoado de montanha com 350 habitantes que serve como base do turismo local.
Não era a primeira vez que Rony, com 19 países carimbados em seus passaportes, cruzava um país só para praticar esportes. Como se verá na segunda temporada do programa Skate na Van, no Canal OFF, Rony e seu grupo de amigos skatistas atravessou recentemente parte dos Estados Unidos e do Canadá em busca de aventuras. O ponto de partida da jornada dos caras foi a Califórnia, uma espécie de segunda casa de Rony, onde ele costuma treinar na famosa Mega-rampa, no quintal da casa do mito conterrâneo Bob Burnquist. Veio de Bob, por sinal, a inspiração para Rony criar seu próprio half-pipe na casa da sua família na cidade de Atibaia, no Estado de São Paulo. O lugar vive recebendo eventos e campeonatos e despertou em Rony a fagulha para construir outros empreendimentos semelhantes. “Sonho em erguer várias pistas de skate pelo Brasil.”
A TRAVESSIA DA Nova Zelândia foi bem mais curta que a norte-americana. “É impressionante como se viaja fácil por aqui”, comenta Rony. “Tudo é perto, e as paisagens mudam muito de um ponto para o outro.” De fato, nessa ilha que mistura vulcões, fiordes, vinhedos e pastagens de ovelhas, as transições podem ser abruptas – como na passagem da paisagem litorânea ao nível do mar de Timaru para os sopés das maiores montanhas do país, entre elas o Cook.
Na trajetória entre um e outro, dois lagos azuis chamam a atenção. No Tekapo, com uma igrejinha fotogênica em uma margem, dá para ver refletidos os picos nevados da região. Já o lago Pukaki seria a parada escolhida por Rony para um pedal à beira d’água com a Cycle Journeys (cyclejourneys.co.nz) – com direito a ser ladeado por fileiras de árvores avermelhadas pelo outono. Com mais tempo e planejamento, vale a pena percorrer o circuito de 300 km da Alps 2 Ocean Cycle Trail (alps2ocean.com), que liga o Cook ao mar e que costuma ser feito em seis dias.
No fim do roteiro, como já tinha acontecido nas paradas do caminho, bastou a van estacionar em Mount Cook Village para Rony se jogar sobre o skate, a fim de reconhecer o território em que estava pisando – ou melhor, rodando. Nesse simples rolê no estacionamento da vila, Rony confirmou o que já se notava desde a estrada: a apenas 12 km dali, o Mount Cook se exibe, sem timidez, como uma entidade sagrada onipresente. Para os maori, etnia de origem polinésia que foi a primeira a habitar a Nova Zelândia, ainda no século 13, aquela entidade monumental é, sim, uma deidade. Tanto é que 20 anos atrás, em 1998, a população maori, que hoje representa 15% dos habitantes da nação, conseguiu acrescentar o nome original da montanha, Aoraki, à alcunha Mount Cook (que, por sua vez, foi dada pelos colonizadores em homenagem ao explorador britânico James Cook, primeiro navegador a registrar a circunavegação da Nova Zelândia).
Que aquele exibicionismo sedutor do Aoraki/mount Cook não engane nem mesmo profissionais do esporte como Rony Gomes: praticar montanhismo sério aqui é atividade para experientes. Mais de 200 pessoas já morreram em acidentes no parque, em geral surpreendidas pelas mudanças bruscas de clima originadas no Mar da Tasmânia, a oeste, distante apenas 44 km dali. Em compensação, não falta beleza acessível a mortais comuns no entorno do Cook e de suas montanhas irmãs dos chamados Alpes do Sul. Com 700 km², o Parque Nacional Mount Cook abriga 22 das 27 montanhas neozelandesas acima de 3.050 metros de altitude. Basta chegar ao bem estruturado The Edmund Hillary Alpine Centre, o centro de apoio ao montanhista do vilarejo, para que monitores orientem sobre caminhadas – de curta, média ou longa duração, seja em trilhas ou glaciares –, passeios de barco, caiaque e a cavalo, observação de estrelas ou sobrevoos de helicóptero e ski-plane. O centro abriga ainda um simplório museu contando a história da conexão do herói com o Mount Cook e uma sala de exibição com filmes B sobre o tema. Ali ao lado, diante do secular hotel The Hermitage, uma estátua de bronze de 2,3 metros faz lembrar que Edmund Hillary está por toda parte da vila. Dá quase para sentir a presença de seu espírito no The Old Mountaineers’ Cafe Bar & Restaurant.
Depois de jogar a mochila no quarto do hotel, Rony decidiu partir para encarar logo aquela que é tida como a mais bonita das dez trilhas de curta duração do parque. Pela primeira vez na viagem, quem teve de ficar esperando na van foi o skate, um modelo da californiana Santa Cruz Skateboards, desenhado pelo respeitado Jimbo Phillips e com o nome Rony Gomes gravado na madeira – privilégio de poucos. Enquanto o skate descansava, seu dono pirava em um bem demarcado e sinalizado caminho de quatro horas, ida e volta, pelo Hooker Valley. A trilha beira o rio formado pelo derretimento do glaciar Hooker, ponto final da caminhada em aclive suave.
Duas pontes suspensas ao longo do trajeto surpreendem por seus projetos de engenharia ousados e dão ao trekking um ar meio Indiana
2 majntfico Parque Nacional Mount Cook, na Ilha Sul, abriga 22 das 27 montanhas com mais de 3.000 metros da Nova Zelândia.
Rony teve a oportunidade de dimensionar o encolhimento dos glaciares ao navegar pelo lago Tasman.
Jones. É depois da segunda delas que o Mount Cook, majestade desaparecida do skyline por algum tempo, volta a reluzir o esplendor do seu pico nevado. Sem planejar, Rony chegou ali quando o sol se punha, o que rendeu imagens incríveis do reflexo do skatista brincando de saltar sobre as pedras do rio.
Uma placa em um dos mirantes do Hooker Valley chamou a atenção para a redução dos glaciares causada pelo aquecimento global. Ainda que gente como o presidente norteamericano Donald Trump insista em dizer que tudo não passa de balela, o fenômeno se mostra indisfarçável em um parque como o Cook, que tem um terço do seu território coberto por gelo e neve permanentes. A placa com a velocidade do derretimento fica no Alpine Memorial, que lamenta a morte de três escaladores na lendária avalanche de 1914.
Rony teria a oportunidade de dimensionar o encolhimento dos glaciares no dia seguinte ao navegar pelo lago Tasman em um bote inflável motorizado. “Nas pedras do entorno do lago, dá para notar a marca de quando a parede de gelo media 150 metros”, apontou Tanika Boxer, guia da Glacier Explorers (glacierexplorers.com) que pilotava a embarcação. “O Glaciar Tasman tem perdido 100 metros por ano.” Na navegação de uma hora driblando os icebergs que se descolaram do glaciar, Rony e a tripulação tiveram a oportunidade de ver sua parte mais baixa, que atualmente mede apenas 30 metros de altura acima da superfície da água – um quinto da altura máxima que o glaciar já atingiu.
Maior dos 72 glaciares do Parque Nacional Mount Cook – e o número 1 em extensão no país, com 27 km –, o Tasman só pode ser dimensionado, de fato, por quem o observa do alto. Rony teve o privilégio de avistar toda aquela grandiosidade fazendo um sobrevoo de uma hora em um ski-plane da Mount Cook Skiplanes (mtcookskiplanes.com). Quando visto do alto, entre picos nevados e lagos de altitude em tons de verde e azul, o Tasman mostra a impressionante beleza de suas ranhuras e gretas. Outros glaciares famosos do país, como o Franz Josef e o Fox, também ofuscam os olhos com sua branquidão. E, reinando no meio deles, está o Mount Cook, poderoso, rodeado em 360 graus pelo avião, em instantes mágicos. Depois da overdose de beleza, chega a hora de maior adrenalina. “Atenção, passageiros, para a aterrissagem no gelo”, anuncia o piloto Dan Martin.
“Dá até um frio na espinha”, brinca Rony, enquanto o avião se aproxima para pousar na imensidão branca da neve na parte alta do glaciar. O toque no solo fofo se mostra suave, muito mais confortável do que faria um Boeing ou Airbus no chão duro de um aeroporto. Em seguida, vieram segundos de ansiedade ao notar que os esquis da aeronave escorregavam em direção a um dos paredões de gelo. Sem estresse, o piloto parou poucos metros antes, diante de um grupo de orientais que se preparava para um trekking com grampões no gelo do Tasman. Logo em seguida, a aeronave abria suas portas. Rony e um seleto grupo de passageiros deixou a aeronave com sorrisos no rosto, se divertindo ao saltar em um solo onde a neve chega até os joelhos.
“Que pico muito louco”, celebrou Rony, em uma empolgação que acelera um pouco o ritmo tranquilo que costuma falar. Apesar da experiência premiada dando piruetas nas pistas de skate e campeonatos mundo afora, de Atibaia à Noruega, da Califórnia à China, aquelas manobras aéreas ainda eram conhecidas por ele. “Faltou só o skate”, lembra o atleta. Seu fiel companheiro e instrumento de trabalho mais uma vez não tinha podido embarcar. Deu saudade? “Quando eu voltar para a vila, brinco mais um pouco. Devo tudo ao skate. Olha só onde ele tem me levado...”