Viagem Interior
Nosso repórter faz um mergulho em si mesmo e nas belezas da Chapada Diamantina
Na imensidão da Chapada Diamantina, uma longa expedição aguça os sentidos e provoca poderosas catarses. Nosso repórter se lança na missão e experimenta o vibrante e imprevisível universo da educação ao ar livre, onde os erros viram oportunidades de mudança, as bússolas internas se ajustam e a consciência se amplia naturalmente
Mares calmos não fazem bons marinheiros. Lembro-me do sábio ditado bem longe de casa, mais precisamente em um canto remoto no interior da Bahia, no extremo sul da Chapada Diamantina. Avançando a passos curtos, agora faço parte de uma fila de 15 corpos arqueados. Carregamos mochilas pesadas e buscamos há horas um caminho sem trilhas marcadas. A luz do sol reflete na vegetação densa e nas rochas imponentes da paisagem. O calor insiste em ferver nossas cabeças – precisamos de uma pausa. Com uma tenda improvisada, descolamos uma merecida sombra. Mais bem abrigados e alimentados, ouvimos atentos as palavras de Hélder, um dos instrutores da expedição. De repente, algo especial começa a acontecer. Daquele segundo em diante, não seríamos mais os mesmos.
Enquanto escutávamos sobre técnicas de resolução de conflitos, um de nós simplesmente não consegue controlar a emoção. Assim que a explicação termina, João, um professor de música de Fortaleza, pede a palavra cheio de lágrimas nos olhos. “O que eu vou dizer agora nunca contei para ninguém”, começa. “Mas aqui, neste lugar e na frente de vocês, eu me sinto à vontade para falar.” João tinha despertado para um conflito pessoal que o incomodava havia anos. E pela primeira vez conseguira verbalizar. Nos minutos seguintes, uma explosão de energia toma conta do grupo: choros intensos, abraços apertados e gargalhadas emanam um estado de transe e euforia coletiva. Exatos três dias atrás, éramos completamente desconhecidos.
Eu já tinha provado anteriormente a dureza de uma expedição longa ao ar livre e seus impactos transformadores no meu corpo e na minha mente. Mas isso aqui era novidade. Algo ainda mais intenso, espontâneo e contagiante. Talvez estas sejam, inclusive, as melhores palavras para descrever a vivência. Por 14 dias, pessoas de norte a sul do Brasil, de diferentes idades, crenças, ocupações e momentos de vida, aceitaram o desafio de conviverem, atravessando terrenos árduos e desconhecidos. Em termos formais, estamos em uma edição do curso FEAL, sigla para Fundamentos da Educação ao Ar Livre, promovido pela Outward Bound Brasil (OBB), uma ONG de alcance mundial e grande referência na relação entre natureza e aprendizado. Em uma visão mais ampla, estamos sentindo na pele os efeitos poderosos da chamada experiential education, ou educação experiencial.
O termo é bastante amplo. Ele conecta nossas experimentações mais básicas – como aprender a andar via tentativa e erro ainda bebês – com um método pedagógico que coloca como alicerce principal o valor das experiências. Outras “vertentes” da linha ganharam força no mundo moderno, como a adventure education (a educação pela aventura) e a outdoor education (ou educação ao ar livre). Um importante denominador comum das abordagens é a intenção. Ou seja, são maneiras sistemáticas, conscientes e seguras de usar experiências marcantes para gerar processos de transformação pessoal e coletiva. Para isso, não parece existir cenário melhor do que uma aventura em ambiente natural.
A ideia geral é sempre ter à mão as ferramentas certas para permitir uma enxurrada de aprendizados aproveitando oportunidades únicas. Deve ser por isso que uma frase mar- cante de Hélder ressoou com tanta força em João durante sua apresentação. “Sentimentos não são biodegradáveis”, defendia nosso instrutor naquela tarde efervescente do cerrado baiano. “Há questões internas que precisamos resolver o quanto antes”, seguia, pouco antes de o grupo entrar na sua primeira e reveladora catarse.
Aos poucos, os instrutores nos dão os caminhos das pedras nesse novo mundo. Era como se estivéssemos reaprendendo a andar. Hélder Madeira, 58, um educador e empresário paulista que escolheu Andaraí (BA) para viver há quase 20 anos, usa sua postura calma e vocação para lecionar. Ele fala com naturalidade de temas que vão do grau de variação do magnetismo na Terra à melhor receita de pizza de acampamento. Ao lado, o potiguar Moaci Judson, 37, aposta no seu carisma, seu raciocínio rápido e sua humildade particulares para compartilhar a longa experiência em expedições e dinâmicas em grupo. Com eles, aprendemos diariamente noções de equipamentos, navegação e técnicas de mínimo impacto, seguindo o protocolo internacional Leave No Trace (Sem Deixar Rastros, em tradução livre). Essa base didática é “apenas” o nosso abecedário. O grande convite geral é bem mais profundo: arrisque-se e se lance no desconhecido.
HÁ QUASE CEM ANOS, o alemão Kurt Hahn iniciava sua própria jornada pessoal repleta de riscos muito maiores. Considerado o pioneiro da adventure education, Kurt atuou em negociações de paz durante a Primeira Guerra. Grande crítico das estruturas acadêmicas e políticas vigentes, o alemão buscava promover um estilo educacional totalmente voltado para o desenvolvimento real de pessoas. Ideologicamente, suas intenções batiam de frente com o regime nazista, que se instalou para valer no seu país nos anos seguintes. Não demorou para Kurt, de família judaica, ser considerado um inimigo do estado.
Mesmo sob pressão, ele deu conta de colocar em prática seus ideais em escolas alemãs alternativas no início do século passado. Mas
Já havia provado a dureza de uma expedição ao ar livre e seus impactos transformadores. Mas isso aqui é mais intenso, espontâneo e contagiante – são os efeitos poderosos da educação experiencial
foi durante o exílio na Inglaterra, já em tempos da Segunda Guerra, que o movimento originário da Outward Bound se firmou. Transferido pelo exército inglês ao País de Gales, Kurt se aliou ao empresário da Marinha Mercante britânica Lawrence Holt. Juntos, eles lançaram um programa de treinamento para jovens navegadores. O despreparo dos tripulantes menos experientes estava gerando mortes e prejuízos para todos os lados, e algo precisava ser feito urgentemente.
Ao unir preparação física, intelectual e emocional com capacidade de decisão, autonomia, liberdade de pensamento e noções de solidariedade e liderança, Kurt colheu resultados significativos nos seus pupilos. Naquele momento, em 1941, consolidou-se no litoral galês de Aberdovey a primeira escola oficial Outward Bound. O nome escolhido se apropria de um termo náutico em referência à saída de uma embarcação. Uma metáfora ao ato de se soltar das amarras e dos “portos seguros” rumo ao imprevisível mar aberto.
Nas décadas seguintes, o modelo começa a se espalhar pela Europa e América do Norte, logo alcançando as fronteiras da África, Ásia e Oceania – a versão brasileira da OB surgiu bem mais tarde, em 2000. Mesmo que os cursos tenham se transformado e evoluído dos tempos dos marinheiros britânicos para cá, a essência se manteve: apostar nas aventuras ao ar livre, no valor do risco, na força de vontade e no trabalho em grupo para gerar relevantes despertares pessoais. Sobre essa pedra fundamental, a entidade está firmada atualmente em mais de 30 países. Cada escola opera sob o guarda-chuva da Outward Brasil Internacional, mantendo liberdade para formar instrutores, desenvolver cursos e explorar as possibilidades de vivências.
Embrenhados em uma área isolada da Diamantina, fica claro como todo o movimento embalado por Kurt é útil, bem-vindo e atual. Nossos dias de expedição por aqui começam às 6h30 da manhã. Depois de pular para fora dos sacos de dormir, nós nos organizamos nas tarefas básicas do dia: buscar água, preparar comida, desmontar e montar barracas e planejar rotas, além de oferecer e receber aulas variadas de cada um dos participantes em momentos oportunos. Dois trechos do nosso diário coletivo, lido em voz alta diariamente, ilustram bem o início do processo: “Cada um de nós é um pedaço desse quebra-cabeça”, observa um participante. “Somos 15 diamantes, sendo lapidados por dentro através da jornada”, escreve outro.
Ser cada vez mais eficiente para permitir momentos de reflexão sobre o que estamos vivendo, na verdade, é o grande desafio. Até porque nosso acampamento seguinte costuma ser montado em distâncias de até 20 km de onde zarpamos logo cedo. Nas nossas mochilas cargueiras levamos todos os suprimentos, o que alcança facilmente de 20 a 30 kg individuais. E assim a rotina se repete (de forma totalmente única) a cada dia.
Nossa principal referência visual é a Serra do Sincorá, considerada um “oásis” na região. Seu clima tropical semiúmido contrasta com o semiárido dos arredores formando uma espécie de ilha com altitudes que alcançam 1.700 metros e temperaturas que variam de 35oc a 5oc. Seus rios, que mesclam tons negros, amarelados e avermelhados, indicam a grande presença de matéria orgânica, além de um subsolo rico em água.
Essa é a casa de diversas espécies endêmicas, de aparentemente frágeis orquídeas a robustos cactos, que sobrevivem às grandes variações de clima. A diversidade do ambiente se revela um espelho do nosso grupo heterogêneo. A capacidade de adaptação e a convivência harmônica entre seres brutos e delicados ao mesmo tempo também traçam uma conexão direta com nossa tribo itinerante. Caminhando por campos gerais e rupestres, cerrado, caatinga, vestígios de mata atlântica e de antigos garimpos, não é só a paisagem que está mudando. Nossos olhares também estão.
De alguma forma, nós nos tornamos capazes de cumprir exigências que mal sabíamos que faziam parte do nosso repertório. Metade das pessoas por ali sequer havia acampado uma vez na vida. Muito menos guiado um bando de desconhecidos por um terreno vasto e traiçoeiro sob chuva e neblina. Esse, aliás, foi exatamente o desafio de um jovem trio formado pelo comunicador mineiro Guilherme, o empreendedor paulista Samir e a engenheira pernambucana Monnik, na manhã do terceiro dia. Não é a capacidade de cada um de superar limites o que impressiona, mas a rapidez com que isso acontece.
“ESSE TIPO DE EXPERIÊNCIA cria uma ‘bolha’ no tempo e espaço, permitindo errar para aprender”, conta Andreas Martin, o “Fisch”, diretor-executivo da OBB na sua casa em São Paulo, revivendo comigo pontos altos da expedição. “Em ambientes de desafio onde as pessoas se sentem seguras para arriscar e se testar, as coisas acontecem de forma veloz e natural”, diz. O escape estruturado e intencional das nossas zonas de conforto entra como um antídoto para uma sociedade atual que encara com pavor e repulsa o ato de falhar. “Isso é algo que só nos leva a errar cada vez mais”, observa Andreas.
Ele mesmo descobriu o universo dos chamados “ambientes seguros de aprendizagem”, ou ASA nos termos da OBB, no ano de 2011, por meio de um FEAL. Graças à vivência, encontrou um divisor de águas na sua vida. Especializado em bioinformática, vinha trabalhando no ramo têxtil quando se encantou pela educação experiencial e mergulhou de cabeça no assunto. Entre 2012 e 2013, coordenou um projeto social dentro da OBB, o Azimute, que atendeu 400 jovens em mais de 20 expedições de campo. Na última década, Andreas e a equipe ligada à entidade têm buscado ampliar os horizontes e estruturar mais programas abertos, instigando perfis variados de pessoas para as experiências educativas ao ar livre.
“A opção por ambientes naturais não é em vão”, ele me explica. Nossos indicadores de estresse costumam baixar consideravelmente na natureza. Isso acontece com hormônios como o cortisol, a pressão sanguínea e os batimentos cardíacos, só para citar alguns. Nesse quadro fisiológico, o corpo não precisa gastar tanta energia com nossa ancestral situação de alerta (luta ou fuga) – no caos de cidades grandes é comum manter esse estado permanentemente “ativado”. Em resumo, quando estamos realmente relaxados, nós nos tornamos mais aptos a formar novas conexões entre neurônios. Quanto mais ampla for a rede, mais versáteis ficamos na vida em geral.
A diversidade do ambiente e a sua capacidade de adaptação se revelam um espelho do nosso grupo heterogêneo. Não é só a paisagem que está mudando. Nossos olhares também estão.
De volta à chapada, isso ajuda a explicar por que estamos navegando tão bem e assimilando conhecimento tão rápido. Kurt já defendia isso ao levantar a bandeira de que temos mais capacidades do que nossa sociedade nos permite desenvolver. Daí seu famoso lema: “Há mais em nós mesmos do que imaginamos; quando percebemos, já não nos contentamos com menos”. Andreas aproveita para completar: “Esse caminho transformador não proporciona somente crescimento como gera prazer; é um ciclo constante que se fortalece”.
Para abrir espaço a esse tipo de jornada, é preciso acionar outra forma de aprendizado. “Enquanto o sistema tradicional está mais preocupado com as respostas certas, o experiencial quer saber se você está fazendo as perguntas corretas”, afirma Fabio Raimo, 50, especialista no assunto desde o início da década de 1990. Na juventude, Fabio teve sua primeira experiência como aluno em um programa de educação ao ar livre e se impressionou com as possibilidades.
“Em cursos na natureza, o teste costuma vir antes da lição”, diz Fabio. “Há uma tendência geral em acharmos que esses processos são muito complicados, mas não demora a percebermos o contrário: explorando as perguntas certas, logo se revela o poder dos erros e dos riscos para aprender.” Experiente guia e instrutor de canoagem oceânica, Fabio é o atual gerente de currículos de expedições da NOLS, uma escola norte-americana que se tornou símbolo de qualidade na linha educacional outdoor focada em liderança e evolução pessoal. Nos anos 2000, junto da engenheira florestal e educadora ambiental Maria Isabel de Barros, a Bebel, seu conhecimento foi essencial para tirar a OBB do papel.
Em escolas de sistema experiencial há também outra inversão importante: em vez da parte técnica, dá-se mais relevância às habilidades sociais. Os dois campos distintos são conhecidos como hard skills e soft skills. O primeiro está ligado a como realizar de forma eficiente e segura práticas variadas: orientação, culinária, construção, noções de meteorologia e por aí vai. O segundo (e primordial) é mais sutil. Saber liderar e se comunicar bem, ser responsável e solidário, gerenciar tensões e resolver conflitos. “Essa é a fundação para qualquer outra área na vida dar certo”, diz Fabio. “Não existe alguém que experimente o valor disso e diga: ‘Essas habilidades não são para mim’.”
Para toda a magia funcionar, no entanto, as experiências precisam ser cuidadosamente escolhidas. Elas têm de focar no aqui e agora, conectando a relevância atual e futura dos processos trabalhados. E, sobretudo, devem promover um envolvimento holístico: físico, emocional, intelectual e social. “É a possibilidade de aprendizado pelas consequências naturais das escolhas”, observa Hélder, que tem usado as ferramentas, junto de técnicas de gerenciamento de risco, leis ambientais e comunicação de qualidade para capacitar mais de 300 guias locais na Chapada Diamantina nos últimos anos. Há ainda mais uma questão essencial. O potencial de aprendizado nesse “universo paralelo” é totalmente variável, assim como os resultados e os desfechos das experiências. É preciso andar de braços dados com a incerteza – um ingrediente essencial em qualquer aventura.
“É UM GRANDE CHACOALHÃO”, resume Moaci, o Moa, nosso intrépido instrutor, sobre a experiência que estamos vivendo e o poder que ela tem de mexer com nossas vidas. Compartilhamos uma conversa leve e aberta caminhando pelos gerais do rio Preto, na metade da expedição, ao lado de Fernando, um conservacionista paranaense, e Leomar, um biólogo gaúcho. Enquanto cada um expõe o que está sentindo, percebo o brilho nos olhos de Moa observando as nuvens carregadas no céu. “Você está louco para chover e ver o circo pegar fogo, não é?”, brinco com Moa. “Adoro colocar a galera na fogueira...”, ele me responde, dando risada.
Natural de Currais Novos (RN), Moa já havia sido chefe escoteiro e acumulava saídas frequentes para a natureza quando conheceu a vertente da educação nesses ambientes. “Foi incrível: deixei de me sentir como um ‘alienígena’”, conta. Identificado com a linha de ensino e empoderado com suas novas ferramentas, ele não tem medido esforços para tentar agregar mais gente às experiências, sobretudo quem tem menos oportunidades – jovens sem grana ou em situações marginalizadas em orfanatos e abrigos. Suas “armas” preferidas são a empatia, a arte de se colocar no lugar do outro e os próprios elementos da natureza, que caem como uma luva para derrubar nossas ilusórias diferenças sociais e potencializar os aprendizados.
Naquela mesma noite, Moa nos convida a resgatar o que vivemos até ali e projetar a segunda metade da expedição. A conexão entre passado e futuro vem por meio de nossas mochilas. Quanto peso estamos carregando? O que é dispensável e o que é essencial? Analisar uma experiência real, ainda com joelhos e ombros doloridos, se mostra valioso.
Um dos principais teóricos da educação experiencial, o psicólogo norte-americano David Kolb, criou um ciclo que explica bem por que todos nós acabamos tocados naquela noite. Quatro importantes etapas se repetem de forma cíclica: vivenciar, refletir, contextualizar e aplicar. A partir daí, tudo recomeça no primeiro item. A cada novo ciclo, nossos organismos já adquiriram uma vivência inédita depois de uma experiência ser processada, verbalizada, compartilhada e analisada do ponto de vista da sua aplicação geral. É essa a engrenagem que movimenta o potencial dessa vertente de educação.
O SUECO TOMAS LIND viveu na adolescência uma experiência inesquecível. Durante um curso da Outward Bound na Austrália, ele se viu em meio a um grupo de seis alunos que entrou em uma caverna escura junto de um instrutor por um tubo natural. Cada um levava apenas a roupa do corpo e a lanterna de cabeça. A trupe já estava convivendo havia dias, com espírito de equipe elevado, noções de espeleologia e boas práticas outdoor. Mas ninguém imaginava o que estava por vir. O instrutor recolheu todas as lanternas e deixou o grupo, sem dizer nada.
Pelas paredes da galeria se espalhavam vários caminhos. Mas apenas um levava à luz. Era exatamente por ele que o instrutor tinha escapado silenciosamente – e de onde podia ouvir e monitorar o que os jovens tramavam. Desafio lançado: como escapar da escuridão em segurança sem perder os nervos nem deixar ninguém para trás? O processo levou
“Enquanto o sistema de educação tradicional está mais preocupado com as respostas certas, o experiencial quer saber se você está fazendo as perguntas corretas”
cerca de três horas e terminou com todos juntos para fora do buraco. Aquilo mudou para sempre a vida de Tomas, que acabou escolhendo o Brasil como lar, sendo um dos líderes do processo que deu origem à OBB.
A história de Tomas faz todo sentido quando revivo um dos momentos mais intensos que passamos. Em uma fase avançada da jornada, somos convidados a experimentar uma noite solo, afastados do acampamento com itens mínimos para um bivaque (dormir ao relento). Todos topam a empreitada. Uma nova explosão de sentimentos e pensamentos toma conta de mim: parto animado, mas logo choro desenfreadamente. Aquilo me faz bem. Paro para me conectar com o lugar, sinto uma energia forte invadindo todos os meus sentidos e até danço sozinho. Armo meu abrigo, contemplo as estrelas e caio em um sono profundo.
Quando desperto da trama de sonhos tão complexa e reveladora como o momento em que me encontro, a luz do dia já toma conta da minha casa improvisada. A chuva lava com força a superfície da pequena tela de proteção junto de tudo o que ficou para trás. Escrevo em letras trêmulas no meu diário: “Não há pressa para nada. Ser e estar se alinham. Estou pronto para traçar meu próximo rumo”.
De volta ao silencioso acampamento coletivo, enxergo no olhar de Christian, um executivo paulista, que algo poderoso lhe aconteceu. Poucos minutos depois, ele decide colocar para fora sua experiência. “Eu revi toda a minha vida”, diz, aos prantos. “Entendi melhor onde estou e para onde preciso ir; foi uma das noites mais incríveis que já passei.” Aquilo soaria ainda com mais força nos nossos ouvidos quando ele mesmo revelaria, já no fim da expedição, que chegou a pensar em abandonar o barco. Felizmente, mudou de ideia. Além da sua revelação pessoal, permitindo-se cruzar um terreno incontrolável, Chris foi o líder que tanto precisávamos, na duríssima caminhada do penúltimo dia.
A força do coletivo ficava nítida nos últimos passos. É a aposta corajosa da educação experiencial: as diferenças criam riquezas junto de uma produtiva tensão criativa. “Tudo isso exige muita energia, principalmente o exercício de se colocar no ‘sapato do outro’”, observa Andreas. “Mas o retorno é enorme.”
Usar a aventura como um meio, e não um objetivo em si, também é uma estratégia atraente. “Se as escolas aplicassem um pouco disso no Brasil, seríamos um país melhor”, aposta Fabio. “Os educadores ficariam espantados com os resultados”, diz. Há outra questão urgente que a educação experiencial na natureza envolve. “Além de transformar indivíduos, precisamos cuidar dos ambientes em que os cursos são inseridos, e para isso temos de criar vínculos emocionais positivos”, sugere Andreas.
Espaços preservados são fundamentais para nossa saúde física e mental. Neles, podemos nos conhecer melhor e superar nossos limites. É ali que entendemos realmente que fazemos parte de algo muito maior. Assim a educação experiencial pode ser mais uma ponte possível para nos reaproximarmos desses espaços.
Durante nossa caminhada final – estamos descendo agora a longa Ladeira do Império rumo a Andaraí –, lembro que há duas semanas a maioria dos alunos se dizia ansiosa para a viagem. A minha ansiedade, ao contrário, aparece pela primeira vez com força na última noite dormida no solo duro da barraca. Minha mente divaga sobre o que vou encontrar lá fora e como poderei aplicar e dar sequência aos aprendizados. Perto da chegada, respiro fundo, celebro o sucesso da missão com outros pares de olhares brilhantes e recordo as palavras que ouvi de Moaci: “O fim da jornada é só o começo da verdadeira expedição”.