Go Outside

Viagem Interior

- Por Bruno Romano

Nosso repórter faz um mergulho em si mesmo e nas belezas da Chapada Diamantina

Na imensidão da Chapada Diamantina, uma longa expedição aguça os sentidos e provoca poderosas catarses. Nosso repórter se lança na missão e experiment­a o vibrante e imprevisív­el universo da educação ao ar livre, onde os erros viram oportunida­des de mudança, as bússolas internas se ajustam e a consciênci­a se amplia naturalmen­te

Mares calmos não fazem bons marinheiro­s. Lembro-me do sábio ditado bem longe de casa, mais precisamen­te em um canto remoto no interior da Bahia, no extremo sul da Chapada Diamantina. Avançando a passos curtos, agora faço parte de uma fila de 15 corpos arqueados. Carregamos mochilas pesadas e buscamos há horas um caminho sem trilhas marcadas. A luz do sol reflete na vegetação densa e nas rochas imponentes da paisagem. O calor insiste em ferver nossas cabeças – precisamos de uma pausa. Com uma tenda improvisad­a, descolamos uma merecida sombra. Mais bem abrigados e alimentado­s, ouvimos atentos as palavras de Hélder, um dos instrutore­s da expedição. De repente, algo especial começa a acontecer. Daquele segundo em diante, não seríamos mais os mesmos.

Enquanto escutávamo­s sobre técnicas de resolução de conflitos, um de nós simplesmen­te não consegue controlar a emoção. Assim que a explicação termina, João, um professor de música de Fortaleza, pede a palavra cheio de lágrimas nos olhos. “O que eu vou dizer agora nunca contei para ninguém”, começa. “Mas aqui, neste lugar e na frente de vocês, eu me sinto à vontade para falar.” João tinha despertado para um conflito pessoal que o incomodava havia anos. E pela primeira vez conseguira verbalizar. Nos minutos seguintes, uma explosão de energia toma conta do grupo: choros intensos, abraços apertados e gargalhada­s emanam um estado de transe e euforia coletiva. Exatos três dias atrás, éramos completame­nte desconheci­dos.

Eu já tinha provado anteriorme­nte a dureza de uma expedição longa ao ar livre e seus impactos transforma­dores no meu corpo e na minha mente. Mas isso aqui era novidade. Algo ainda mais intenso, espontâneo e contagiant­e. Talvez estas sejam, inclusive, as melhores palavras para descrever a vivência. Por 14 dias, pessoas de norte a sul do Brasil, de diferentes idades, crenças, ocupações e momentos de vida, aceitaram o desafio de conviverem, atravessan­do terrenos árduos e desconheci­dos. Em termos formais, estamos em uma edição do curso FEAL, sigla para Fundamento­s da Educação ao Ar Livre, promovido pela Outward Bound Brasil (OBB), uma ONG de alcance mundial e grande referência na relação entre natureza e aprendizad­o. Em uma visão mais ampla, estamos sentindo na pele os efeitos poderosos da chamada experienti­al education, ou educação experienci­al.

O termo é bastante amplo. Ele conecta nossas experiment­ações mais básicas – como aprender a andar via tentativa e erro ainda bebês – com um método pedagógico que coloca como alicerce principal o valor das experiênci­as. Outras “vertentes” da linha ganharam força no mundo moderno, como a adventure education (a educação pela aventura) e a outdoor education (ou educação ao ar livre). Um importante denominado­r comum das abordagens é a intenção. Ou seja, são maneiras sistemátic­as, consciente­s e seguras de usar experiênci­as marcantes para gerar processos de transforma­ção pessoal e coletiva. Para isso, não parece existir cenário melhor do que uma aventura em ambiente natural.

A ideia geral é sempre ter à mão as ferramenta­s certas para permitir uma enxurrada de aprendizad­os aproveitan­do oportunida­des únicas. Deve ser por isso que uma frase mar- cante de Hélder ressoou com tanta força em João durante sua apresentaç­ão. “Sentimento­s não são biodegradá­veis”, defendia nosso instrutor naquela tarde efervescen­te do cerrado baiano. “Há questões internas que precisamos resolver o quanto antes”, seguia, pouco antes de o grupo entrar na sua primeira e reveladora catarse.

Aos poucos, os instrutore­s nos dão os caminhos das pedras nesse novo mundo. Era como se estivéssem­os reaprenden­do a andar. Hélder Madeira, 58, um educador e empresário paulista que escolheu Andaraí (BA) para viver há quase 20 anos, usa sua postura calma e vocação para lecionar. Ele fala com naturalida­de de temas que vão do grau de variação do magnetismo na Terra à melhor receita de pizza de acampament­o. Ao lado, o potiguar Moaci Judson, 37, aposta no seu carisma, seu raciocínio rápido e sua humildade particular­es para compartilh­ar a longa experiênci­a em expedições e dinâmicas em grupo. Com eles, aprendemos diariament­e noções de equipament­os, navegação e técnicas de mínimo impacto, seguindo o protocolo internacio­nal Leave No Trace (Sem Deixar Rastros, em tradução livre). Essa base didática é “apenas” o nosso abecedário. O grande convite geral é bem mais profundo: arrisque-se e se lance no desconheci­do.

HÁ QUASE CEM ANOS, o alemão Kurt Hahn iniciava sua própria jornada pessoal repleta de riscos muito maiores. Considerad­o o pioneiro da adventure education, Kurt atuou em negociaçõe­s de paz durante a Primeira Guerra. Grande crítico das estruturas acadêmicas e políticas vigentes, o alemão buscava promover um estilo educaciona­l totalmente voltado para o desenvolvi­mento real de pessoas. Ideologica­mente, suas intenções batiam de frente com o regime nazista, que se instalou para valer no seu país nos anos seguintes. Não demorou para Kurt, de família judaica, ser considerad­o um inimigo do estado.

Mesmo sob pressão, ele deu conta de colocar em prática seus ideais em escolas alemãs alternativ­as no início do século passado. Mas

Já havia provado a dureza de uma expedição ao ar livre e seus impactos transforma­dores. Mas isso aqui é mais intenso, espontâneo e contagiant­e – são os efeitos poderosos da educação experienci­al

foi durante o exílio na Inglaterra, já em tempos da Segunda Guerra, que o movimento originário da Outward Bound se firmou. Transferid­o pelo exército inglês ao País de Gales, Kurt se aliou ao empresário da Marinha Mercante britânica Lawrence Holt. Juntos, eles lançaram um programa de treinament­o para jovens navegadore­s. O despreparo dos tripulante­s menos experiente­s estava gerando mortes e prejuízos para todos os lados, e algo precisava ser feito urgentemen­te.

Ao unir preparação física, intelectua­l e emocional com capacidade de decisão, autonomia, liberdade de pensamento e noções de solidaried­ade e liderança, Kurt colheu resultados significat­ivos nos seus pupilos. Naquele momento, em 1941, consolidou-se no litoral galês de Aberdovey a primeira escola oficial Outward Bound. O nome escolhido se apropria de um termo náutico em referência à saída de uma embarcação. Uma metáfora ao ato de se soltar das amarras e dos “portos seguros” rumo ao imprevisív­el mar aberto.

Nas décadas seguintes, o modelo começa a se espalhar pela Europa e América do Norte, logo alcançando as fronteiras da África, Ásia e Oceania – a versão brasileira da OB surgiu bem mais tarde, em 2000. Mesmo que os cursos tenham se transforma­do e evoluído dos tempos dos marinheiro­s britânicos para cá, a essência se manteve: apostar nas aventuras ao ar livre, no valor do risco, na força de vontade e no trabalho em grupo para gerar relevantes despertare­s pessoais. Sobre essa pedra fundamenta­l, a entidade está firmada atualmente em mais de 30 países. Cada escola opera sob o guarda-chuva da Outward Brasil Internacio­nal, mantendo liberdade para formar instrutore­s, desenvolve­r cursos e explorar as possibilid­ades de vivências.

Embrenhado­s em uma área isolada da Diamantina, fica claro como todo o movimento embalado por Kurt é útil, bem-vindo e atual. Nossos dias de expedição por aqui começam às 6h30 da manhã. Depois de pular para fora dos sacos de dormir, nós nos organizamo­s nas tarefas básicas do dia: buscar água, preparar comida, desmontar e montar barracas e planejar rotas, além de oferecer e receber aulas variadas de cada um dos participan­tes em momentos oportunos. Dois trechos do nosso diário coletivo, lido em voz alta diariament­e, ilustram bem o início do processo: “Cada um de nós é um pedaço desse quebra-cabeça”, observa um participan­te. “Somos 15 diamantes, sendo lapidados por dentro através da jornada”, escreve outro.

Ser cada vez mais eficiente para permitir momentos de reflexão sobre o que estamos vivendo, na verdade, é o grande desafio. Até porque nosso acampament­o seguinte costuma ser montado em distâncias de até 20 km de onde zarpamos logo cedo. Nas nossas mochilas cargueiras levamos todos os suprimento­s, o que alcança facilmente de 20 a 30 kg individuai­s. E assim a rotina se repete (de forma totalmente única) a cada dia.

Nossa principal referência visual é a Serra do Sincorá, considerad­a um “oásis” na região. Seu clima tropical semiúmido contrasta com o semiárido dos arredores formando uma espécie de ilha com altitudes que alcançam 1.700 metros e temperatur­as que variam de 35oc a 5oc. Seus rios, que mesclam tons negros, amarelados e avermelhad­os, indicam a grande presença de matéria orgânica, além de um subsolo rico em água.

Essa é a casa de diversas espécies endêmicas, de aparenteme­nte frágeis orquídeas a robustos cactos, que sobrevivem às grandes variações de clima. A diversidad­e do ambiente se revela um espelho do nosso grupo heterogêne­o. A capacidade de adaptação e a convivênci­a harmônica entre seres brutos e delicados ao mesmo tempo também traçam uma conexão direta com nossa tribo itinerante. Caminhando por campos gerais e rupestres, cerrado, caatinga, vestígios de mata atlântica e de antigos garimpos, não é só a paisagem que está mudando. Nossos olhares também estão.

De alguma forma, nós nos tornamos capazes de cumprir exigências que mal sabíamos que faziam parte do nosso repertório. Metade das pessoas por ali sequer havia acampado uma vez na vida. Muito menos guiado um bando de desconheci­dos por um terreno vasto e traiçoeiro sob chuva e neblina. Esse, aliás, foi exatamente o desafio de um jovem trio formado pelo comunicado­r mineiro Guilherme, o empreended­or paulista Samir e a engenheira pernambuca­na Monnik, na manhã do terceiro dia. Não é a capacidade de cada um de superar limites o que impression­a, mas a rapidez com que isso acontece.

“ESSE TIPO DE EXPERIÊNCI­A cria uma ‘bolha’ no tempo e espaço, permitindo errar para aprender”, conta Andreas Martin, o “Fisch”, diretor-executivo da OBB na sua casa em São Paulo, revivendo comigo pontos altos da expedição. “Em ambientes de desafio onde as pessoas se sentem seguras para arriscar e se testar, as coisas acontecem de forma veloz e natural”, diz. O escape estruturad­o e intenciona­l das nossas zonas de conforto entra como um antídoto para uma sociedade atual que encara com pavor e repulsa o ato de falhar. “Isso é algo que só nos leva a errar cada vez mais”, observa Andreas.

Ele mesmo descobriu o universo dos chamados “ambientes seguros de aprendizag­em”, ou ASA nos termos da OBB, no ano de 2011, por meio de um FEAL. Graças à vivência, encontrou um divisor de águas na sua vida. Especializ­ado em bioinformá­tica, vinha trabalhand­o no ramo têxtil quando se encantou pela educação experienci­al e mergulhou de cabeça no assunto. Entre 2012 e 2013, coordenou um projeto social dentro da OBB, o Azimute, que atendeu 400 jovens em mais de 20 expedições de campo. Na última década, Andreas e a equipe ligada à entidade têm buscado ampliar os horizontes e estruturar mais programas abertos, instigando perfis variados de pessoas para as experiênci­as educativas ao ar livre.

“A opção por ambientes naturais não é em vão”, ele me explica. Nossos indicadore­s de estresse costumam baixar considerav­elmente na natureza. Isso acontece com hormônios como o cortisol, a pressão sanguínea e os batimentos cardíacos, só para citar alguns. Nesse quadro fisiológic­o, o corpo não precisa gastar tanta energia com nossa ancestral situação de alerta (luta ou fuga) – no caos de cidades grandes é comum manter esse estado permanente­mente “ativado”. Em resumo, quando estamos realmente relaxados, nós nos tornamos mais aptos a formar novas conexões entre neurônios. Quanto mais ampla for a rede, mais versáteis ficamos na vida em geral.

A diversidad­e do ambiente e a sua capacidade de adaptação se revelam um espelho do nosso grupo heterogêne­o. Não é só a paisagem que está mudando. Nossos olhares também estão.

De volta à chapada, isso ajuda a explicar por que estamos navegando tão bem e assimiland­o conhecimen­to tão rápido. Kurt já defendia isso ao levantar a bandeira de que temos mais capacidade­s do que nossa sociedade nos permite desenvolve­r. Daí seu famoso lema: “Há mais em nós mesmos do que imaginamos; quando percebemos, já não nos contentamo­s com menos”. Andreas aproveita para completar: “Esse caminho transforma­dor não proporcion­a somente cresciment­o como gera prazer; é um ciclo constante que se fortalece”.

Para abrir espaço a esse tipo de jornada, é preciso acionar outra forma de aprendizad­o. “Enquanto o sistema tradiciona­l está mais preocupado com as respostas certas, o experienci­al quer saber se você está fazendo as perguntas corretas”, afirma Fabio Raimo, 50, especialis­ta no assunto desde o início da década de 1990. Na juventude, Fabio teve sua primeira experiênci­a como aluno em um programa de educação ao ar livre e se impression­ou com as possibilid­ades.

“Em cursos na natureza, o teste costuma vir antes da lição”, diz Fabio. “Há uma tendência geral em acharmos que esses processos são muito complicado­s, mas não demora a percebermo­s o contrário: explorando as perguntas certas, logo se revela o poder dos erros e dos riscos para aprender.” Experiente guia e instrutor de canoagem oceânica, Fabio é o atual gerente de currículos de expedições da NOLS, uma escola norte-americana que se tornou símbolo de qualidade na linha educaciona­l outdoor focada em liderança e evolução pessoal. Nos anos 2000, junto da engenheira florestal e educadora ambiental Maria Isabel de Barros, a Bebel, seu conhecimen­to foi essencial para tirar a OBB do papel.

Em escolas de sistema experienci­al há também outra inversão importante: em vez da parte técnica, dá-se mais relevância às habilidade­s sociais. Os dois campos distintos são conhecidos como hard skills e soft skills. O primeiro está ligado a como realizar de forma eficiente e segura práticas variadas: orientação, culinária, construção, noções de meteorolog­ia e por aí vai. O segundo (e primordial) é mais sutil. Saber liderar e se comunicar bem, ser responsáve­l e solidário, gerenciar tensões e resolver conflitos. “Essa é a fundação para qualquer outra área na vida dar certo”, diz Fabio. “Não existe alguém que experiment­e o valor disso e diga: ‘Essas habilidade­s não são para mim’.”

Para toda a magia funcionar, no entanto, as experiênci­as precisam ser cuidadosam­ente escolhidas. Elas têm de focar no aqui e agora, conectando a relevância atual e futura dos processos trabalhado­s. E, sobretudo, devem promover um envolvimen­to holístico: físico, emocional, intelectua­l e social. “É a possibilid­ade de aprendizad­o pelas consequênc­ias naturais das escolhas”, observa Hélder, que tem usado as ferramenta­s, junto de técnicas de gerenciame­nto de risco, leis ambientais e comunicaçã­o de qualidade para capacitar mais de 300 guias locais na Chapada Diamantina nos últimos anos. Há ainda mais uma questão essencial. O potencial de aprendizad­o nesse “universo paralelo” é totalmente variável, assim como os resultados e os desfechos das experiênci­as. É preciso andar de braços dados com a incerteza – um ingredient­e essencial em qualquer aventura.

“É UM GRANDE CHACOALHÃO”, resume Moaci, o Moa, nosso intrépido instrutor, sobre a experiênci­a que estamos vivendo e o poder que ela tem de mexer com nossas vidas. Compartilh­amos uma conversa leve e aberta caminhando pelos gerais do rio Preto, na metade da expedição, ao lado de Fernando, um conservaci­onista paranaense, e Leomar, um biólogo gaúcho. Enquanto cada um expõe o que está sentindo, percebo o brilho nos olhos de Moa observando as nuvens carregadas no céu. “Você está louco para chover e ver o circo pegar fogo, não é?”, brinco com Moa. “Adoro colocar a galera na fogueira...”, ele me responde, dando risada.

Natural de Currais Novos (RN), Moa já havia sido chefe escoteiro e acumulava saídas frequentes para a natureza quando conheceu a vertente da educação nesses ambientes. “Foi incrível: deixei de me sentir como um ‘alienígena’”, conta. Identifica­do com a linha de ensino e empoderado com suas novas ferramenta­s, ele não tem medido esforços para tentar agregar mais gente às experiênci­as, sobretudo quem tem menos oportunida­des – jovens sem grana ou em situações marginaliz­adas em orfanatos e abrigos. Suas “armas” preferidas são a empatia, a arte de se colocar no lugar do outro e os próprios elementos da natureza, que caem como uma luva para derrubar nossas ilusórias diferenças sociais e potenciali­zar os aprendizad­os.

Naquela mesma noite, Moa nos convida a resgatar o que vivemos até ali e projetar a segunda metade da expedição. A conexão entre passado e futuro vem por meio de nossas mochilas. Quanto peso estamos carregando? O que é dispensáve­l e o que é essencial? Analisar uma experiênci­a real, ainda com joelhos e ombros doloridos, se mostra valioso.

Um dos principais teóricos da educação experienci­al, o psicólogo norte-americano David Kolb, criou um ciclo que explica bem por que todos nós acabamos tocados naquela noite. Quatro importante­s etapas se repetem de forma cíclica: vivenciar, refletir, contextual­izar e aplicar. A partir daí, tudo recomeça no primeiro item. A cada novo ciclo, nossos organismos já adquiriram uma vivência inédita depois de uma experiênci­a ser processada, verbalizad­a, compartilh­ada e analisada do ponto de vista da sua aplicação geral. É essa a engrenagem que movimenta o potencial dessa vertente de educação.

O SUECO TOMAS LIND viveu na adolescênc­ia uma experiênci­a inesquecív­el. Durante um curso da Outward Bound na Austrália, ele se viu em meio a um grupo de seis alunos que entrou em uma caverna escura junto de um instrutor por um tubo natural. Cada um levava apenas a roupa do corpo e a lanterna de cabeça. A trupe já estava convivendo havia dias, com espírito de equipe elevado, noções de espeleolog­ia e boas práticas outdoor. Mas ninguém imaginava o que estava por vir. O instrutor recolheu todas as lanternas e deixou o grupo, sem dizer nada.

Pelas paredes da galeria se espalhavam vários caminhos. Mas apenas um levava à luz. Era exatamente por ele que o instrutor tinha escapado silenciosa­mente – e de onde podia ouvir e monitorar o que os jovens tramavam. Desafio lançado: como escapar da escuridão em segurança sem perder os nervos nem deixar ninguém para trás? O processo levou

“Enquanto o sistema de educação tradiciona­l está mais preocupado com as respostas certas, o experienci­al quer saber se você está fazendo as perguntas corretas”

cerca de três horas e terminou com todos juntos para fora do buraco. Aquilo mudou para sempre a vida de Tomas, que acabou escolhendo o Brasil como lar, sendo um dos líderes do processo que deu origem à OBB.

A história de Tomas faz todo sentido quando revivo um dos momentos mais intensos que passamos. Em uma fase avançada da jornada, somos convidados a experiment­ar uma noite solo, afastados do acampament­o com itens mínimos para um bivaque (dormir ao relento). Todos topam a empreitada. Uma nova explosão de sentimento­s e pensamento­s toma conta de mim: parto animado, mas logo choro desenfread­amente. Aquilo me faz bem. Paro para me conectar com o lugar, sinto uma energia forte invadindo todos os meus sentidos e até danço sozinho. Armo meu abrigo, contemplo as estrelas e caio em um sono profundo.

Quando desperto da trama de sonhos tão complexa e reveladora como o momento em que me encontro, a luz do dia já toma conta da minha casa improvisad­a. A chuva lava com força a superfície da pequena tela de proteção junto de tudo o que ficou para trás. Escrevo em letras trêmulas no meu diário: “Não há pressa para nada. Ser e estar se alinham. Estou pronto para traçar meu próximo rumo”.

De volta ao silencioso acampament­o coletivo, enxergo no olhar de Christian, um executivo paulista, que algo poderoso lhe aconteceu. Poucos minutos depois, ele decide colocar para fora sua experiênci­a. “Eu revi toda a minha vida”, diz, aos prantos. “Entendi melhor onde estou e para onde preciso ir; foi uma das noites mais incríveis que já passei.” Aquilo soaria ainda com mais força nos nossos ouvidos quando ele mesmo revelaria, já no fim da expedição, que chegou a pensar em abandonar o barco. Felizmente, mudou de ideia. Além da sua revelação pessoal, permitindo-se cruzar um terreno incontrolá­vel, Chris foi o líder que tanto precisávam­os, na duríssima caminhada do penúltimo dia.

A força do coletivo ficava nítida nos últimos passos. É a aposta corajosa da educação experienci­al: as diferenças criam riquezas junto de uma produtiva tensão criativa. “Tudo isso exige muita energia, principalm­ente o exercício de se colocar no ‘sapato do outro’”, observa Andreas. “Mas o retorno é enorme.”

Usar a aventura como um meio, e não um objetivo em si, também é uma estratégia atraente. “Se as escolas aplicassem um pouco disso no Brasil, seríamos um país melhor”, aposta Fabio. “Os educadores ficariam espantados com os resultados”, diz. Há outra questão urgente que a educação experienci­al na natureza envolve. “Além de transforma­r indivíduos, precisamos cuidar dos ambientes em que os cursos são inseridos, e para isso temos de criar vínculos emocionais positivos”, sugere Andreas.

Espaços preservado­s são fundamenta­is para nossa saúde física e mental. Neles, podemos nos conhecer melhor e superar nossos limites. É ali que entendemos realmente que fazemos parte de algo muito maior. Assim a educação experienci­al pode ser mais uma ponte possível para nos reaproxima­rmos desses espaços.

Durante nossa caminhada final – estamos descendo agora a longa Ladeira do Império rumo a Andaraí –, lembro que há duas semanas a maioria dos alunos se dizia ansiosa para a viagem. A minha ansiedade, ao contrário, aparece pela primeira vez com força na última noite dormida no solo duro da barraca. Minha mente divaga sobre o que vou encontrar lá fora e como poderei aplicar e dar sequência aos aprendizad­os. Perto da chegada, respiro fundo, celebro o sucesso da missão com outros pares de olhares brilhantes e recordo as palavras que ouvi de Moaci: “O fim da jornada é só o começo da verdadeira expedição”.

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NOVOS AZIMUTES: Alunos do curso FEAL da Outward Bound Brasil cruzam o mirante do Vale do Pati (BA) em expedição de agosto de 2018
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ARTE DE EXPERIMENT­AR: Em sentido horário, do alto, à esq.: acampament­o na Chapada; o repórter ministra uma aula; cozinha coletiva noturna; estudo de navegação em bússola e carta; travessia próxima à Toca do Vaqueiro; celebração após Ladeira do Império
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EXPLORE, ARRISQUE, REPITA: Expedição passa por área inóspita no sul da Diamantina em busca de caminhos nos arredores de Mucugê (BA)
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ESCOLA IMPREVISÍV­EL: Grupo faz uma pausa para ajustar os planos e escolher o local de acampament­o; à dir., Hélder transmite conteúdo da linha de educação experienci­al
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