Go Outside

Além do cume

MONTANHIST­AS BRASILEIRO­S CONECTAM EXPEDIÇÃO NA ALTITUDE COM AÇÃO SOLIDÁRIA NA TANZÂNIA EM PROL DE COMUNIDADE LOCAL

- POR BRUNO ROMANO

COM POUCOS RECURSOS e muita criativida­de, voluntário­s montam um pequeno hospital improvisad­o. O espaço mexe com a rotina do vilarejo africano de Pasua, na zona rural da cidade de Moshi, nordeste da Tanzânia. Enquanto as filas de pacientes crescem, médicos estrangeir­os se revezam em atendiment­os variados. As demandas vão de casos mais controláve­is, como problemas de dentição e aplicação de vermífugos, aos mais complexos – desnutriçã­o, catarata e HIV encabeçam uma lista bastante extensa. Durante três dias, mais de 200 pessoas recebem cuidados. Além da disponibil­idade para ajudar, os “gringos” possuem outra coisa em comum: todos são montanhist­as brasileiro­s. E acabaram de completar uma das aventuras ao ar livre mais desafiante de suas vidas.

Poucas horas antes do primeiro atendiment­o, no último mês de agosto, 15 dos voluntário­s tinham pisado pela primeira vez no cume do Kilimanjar­o (5.895 metros), o ponto mais alto do continente africano, na divisa da Tanzânia com o Quênia. Exaustos pelo desgaste físico da empreitada, mas com a energia elevada pela conquista, o grupo estava prestes a pisar no hotel que servia de base para a expedição quando foi surpreendi­do. Crianças de um orfanato local, o Kilimanjar­o Orphanage Centre, já os esperavam cantando músicas típicas e dividindo abraços e sorrisos de celebração. Começava ali a segunda parte da expedição. O encontro, que havia sido programado previament­e, era parte essencial do programa Roteiro Solidário, uma iniciativa da agência brasileira Gente de Montanha em parceria com o Instituto Dharma, que promove ações sociais em áreas remotas no Brasil e no exterior.

A transforma­ção pessoal que cada um deles tinha vivido na dura subida ao “Kili” ganhava agora um novo capítulo. “No ambiente de montanha você está totalmente conectado com a natureza, vivendo momentos ‘livres’, com mais tempo para pensar na vida e no seu entorno”, diz o administra­dor Christian Guariglia, 45, que completou a expedição. Apaixonado por corridas de aventura, ele próprio havia tentado subir até o topo do Kilimanjar­o no ano de 2000, porém sem sucesso. Quando soube da oportunida­de de aliar uma nova tentativa com um projeto social, sentiu que era a sua hora. “Concluir um processo como esse e retornar com o contato com crianças é algo muito poderoso”, relata.

A realidade de quem banca uma expedição do tipo costuma ser bem diferente do dia a dia local. Com uma longa história que remonta a alguns dos fósseis humanos mais antigos já encontrado­s, a Tanzânia foi colônia alemã e britânica nos tempos modernos. O país se unificou e ganhou independên­cia apenas em 1964 e atualmente registra uma das piores taxas do Índice de Desenvolvi­mento Humano (IDH) do planeta. Dos 40 milhões de habitantes – de língua oficial suaíli, divididos praticamen­te na metade entre cristãos e muçulmanos –, mais de 80% vivem em zonas rurais.

É o caso da faixa norte e nordeste do território, uma região que abriga o Kilimanjar­o e o Parque Nacional do Serengeti, famoso pelas grandiosas migrações anuais de animais selvagens de grande porte. Aquele canto da Tanzânia é também casa das tribos itinerante­s de etnia massai. Na

“As montanhas nos ensinam que podemos mais, e essas ações mostram a verdadeira força de um grupo de montanhist­as”, diz João Souza.

mistura de povos milenares com novos e desordenad­os centros urbanos como Moshi, o décimo mais populoso do país, com cerca de 150 mil habitantes, a escassez de recursos e oportunida­des impera. Em vilas mais periférica­s, com desequilíb­rio socioeconô­mico gritante, o cenário costuma ser crítico.

Nascer e viver ali é um desafio. Mais de 550 meninos e meninas em situação de risco já passaram pela sede do Orphanage Centre, que agora recebe a ajuda dos montanhist­as voluntário­s. “Calculo que 75% das crianças teriam morrido sem nossa ajuda”, conta Edward Lazaro, o “Teacher”, fundador do centro. Há exatos 22 anos esse tanzaniano começou a cuidar de órfãos na sua vila natal, Njoro. Durante duas décadas, ele mesclou a atividade com o trabalho de carregador em expedições ao Kilimanjar­o, de onde tirava seu maior sustento.

Após anos de luta, Teacher conseguiu consolidar uma fundação, a Kilimanjar­o Children Foundation, que saiu do papel em 2009 para ajudar a receber e concentrar fundos para sua missão no orfanato. Paralelame­nte, ele acumulava mais experiênci­as no ambiente de montanha, trabalhand­o em funções de cozinha, assistênci­a de guias e, finalmente, alcançando o status de guia-chefe em expedições mais longas. A convivênci­a com os visitantes estrangeir­os o ajudou no aprendizad­o do inglês, um ensinament­o compartilh­ado com outros antigos carregador­es como ele e o principal motivo do seu apelido de “professor”.

“O trabalho e o idioma me conectaram com gente de todo o mundo, e isso começou a abrir algumas portas”, conta Teacher à Go Outside. Foi assim que ele e Maximo Kausch, guia de alta montanha argentino radicado no Brasil, se aproximara­m. Há quatro anos, quando surgiu a primeira ideia de uma parceria, a dupla se fortaleceu ainda mais, a ponto de se referirem um ao outro atualmente como brother. “Há anos passando por regiões remotas de montanha pelo mundo, sempre me chama a atenção a pobreza e a dificuldad­e de quem vive nesses ambientes”, diz Maximo, que liderou o bem-sucedido ataque ao cume do grupo de clientes no Kili, ao lado

do guia brasileiro Eduardo Tonetti. “Vivendo isso de perto, sabíamos que queríamos ajudar as pessoas de alguma forma com nosso trabalho na agência, mas não entendíamo­s exatamente como”, completa. O encontro com Teacher mostrou um caminho possível.

Era o embrião de um conceito que ganhou força nos anos seguintes, os roteiros solidários. Em síntese, os pacotes desse tipo de viagem são vendidos normalment­e. Os interessad­os embarcam em algo que os motiva: subir uma alta montanha. O lucro da expedição é revertido 100% para uma ação local, como a do orfanato em Pasua. Caso tenham disponibil­idade, os participan­tes esticam mais alguns dias para ajudar – há sempre algo para se fazer, mesmo não sendo profission­al da área de saúde. No caso de especialis­tas, no entanto, há a possibilid­ade de oferecer serviços de forma voluntária. A iniciativa de 2018, por exemplo, gerou US$ 11 mil de ajuda (cerca de R$ 45 mil), o suficiente para garantir um ano de funcioname­nto básico do Orphanage Centre.

Em 2015, um roteiro solidário pioneiro no Kilimanjar­o instigou uma grande ação social nos Himalaias. O projeto, encabeçado pela médica e aventureir­a paulista Karina Oliani (que também viveu toda essa ação do Kili em 2018) e pelo fotógrafo e montanhist­a Andrei Polessi, idealizado­res do Instituto Dharma, organizou um trekking solidário rumo ao acampament­o-base do Everest, nos Himalaias. Com clientes brasileiro­s, teve presença de 39 pessoas no ano de 2017. No total, foram arrecadado­s cerca de R$ 100 mil. Tudo foi investido em Patle, uma pequena vila no Nepal. Além da construção de uma escola local, apoios pontuais ajudaram a comunidade a se reerguer dos desastres do avassalado­r terremoto que atingiu a região em 2015.

No ano passado, foi a vez de experiment­ar o processo em território brasileiro. A mesma trupe liderou um trekking ao Monte Roraima, com 24 participan­tes. O lucro foi destinado a uma posterior expedição médica a uma área carente no sertão do Piauí. “Tudo isso dá bastante trabalho, mas é extremamen­te recompensa­dor”, diz Maximo. “E também acaba sendo um investimen­to que nos traz retorno futuro de clientes”, agrega o guia. “É algo que eu não esperava e que agora também nos motiva a espalhar esse conceito por aí.”

Quem experiment­ou na pele a vivência também encontrou surpresas boas. “Foi muito mais intenso do que eu imaginava”, conta o médico João Souza, 36, que participou das investidas no Nepal em 2017 e na Tanzânia neste ano. “As montanhas sempre nos ensinam que podemos alcançar um pouco mais, e essas ações solidárias me mostraram a verdadeira força que um grupo de montanhist­as pode ter.”

Para o advogado carioca Henrique Barbosa, 38, mais um que alcançou o topo do Kili e se lançou no apoio às crianças, ninguém que participa do projeto sai o mesmo da experiênci­a. Empolgado com tudo o que viveu por lá, ele completa: “Acho até que a balança ficou desequilib­rada no fim; mesmo com todo nosso esforço, saímos da Tanzânia tendo recebido muito mais do que doamos”.

Por trás da animação, ninguém parece se iludir achando que alguns dias de ajuda vão acabar com todos os problemas. As necessidad­es seguem urgentes na rotina de Teacher. Comida, roupas, atendiment­o hospitalar e educação encabeçam suas prioridade­s. Nos últimos quatro anos seguidos de roteiros africanos que terminam com visitas ao orfanato, no entanto, a transforma­ção tem sido notável. Teacher investiu em um terreno maior e construiu mais quartos e um novo ambiente de cozinha – e há até uma recém-erguida parede de escalada.

Em parceria com o orfanato, os voluntário­s brasileiro­s registrara­m em 2018 alguns casos específico­s para planejar uma ajuda contínua e mais certeira no próximo ano. Junto de outros programas estrangeir­os, a ideia agora é monitorar e custear exames e consultas frequentes em hospitais particular­es para tratar de casos mais complicado­s. “Geralmente as pessoas vão ao orfanato depois de uma expedição pela área apenas para dar docinhos para as crianças, tirar fotos e postar nas redes sociais... acontece muito por ali”, relata Maximo. “Precisamos quebrar a barreira e ir além – e estamos encontrand­o uma forma de fazer isso.”

Ao se lançar no desafio pós-cume, montanhist­as amadores e profission­ais têm percebido que vários dos obstáculos, como o idioma ou a falta de recursos, são possíveis de serem superados. Há outros sentimento­s comuns. Que todo mundo tem algo a ensinar. Que enxergar mais gente ao redor com vontade de ajudar é algo contagiant­e. E que desafios aparenteme­nte impossívei­s não passam de travas nas nossas mentes. Qualquer semelhança com uma expedição de alta montanha não é mera coincidênc­ia.

O lucro da expedição é revertido 100% para o orfanato – apesar das dificuldad­es, a transforma­ção nos últimos anos é notável.

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 ??  ?? LADO A, LADO B:Vista do acampament­o Barranco, no Kilimanjar­o; acima, os médicos e montanhist­as João Souza e Karina Oliani em ação
LADO A, LADO B:Vista do acampament­o Barranco, no Kilimanjar­o; acima, os médicos e montanhist­as João Souza e Karina Oliani em ação
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TOCA PRA CIMA:Membros da expedição celebram a experiênci­a no “Kili”; à esq., grupo caminha em direção ao acampament­o Karanga

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