Go Outside

A verdade está lá fora – na água

ONDAS ARTIFICIAI­S AGORA PROPORCION­AM UM SURF TÃO BOM QUANTO AS DE VERDADE. MAS, SE TIRAMOS O SURF DA NATUREZA, CONTINUA SENDO SURF?

- POR ALEX WILSON*

A IDEIA DE QUE a humanidade avança em direção a um futuro ultratecno­lógico – no qual homens, máquinas e natureza se fundiriam de forma nunca antes vista – está em progresso. Na área da inteligênc­ia artificial, especialis­tas acreditam que esse tal “futuro high tech” chegará ainda neste século. Em alguns esportes, já chegou.

Prova disso é a onda artificial criada no coração do desértico Vale Central da Califórnia, nos EUA. Mais exatamente a cerca de 160 km do Oceano Pacífico, na cidade agrícola de Lemoore. Desenvolvi­da pela Wave Company, empresa do mito Kelly Slater, o Surf Ranch abriga uma piscina de quase 700 metros de compriment­o que produz uma onda bidimensio­nal de alta performanc­e. Em setembro deste ano, o local sediou uma competição da World Surf League, a liga mundial do surf profission­al, vencida pelo brasileiro Gabriel Medina.

A onda em si é gerada por um hidrofólio (uma espécie de pá) submerso, puxado ao longo da piscina por uma esteira rolante que parece um trem. Para construí-la, Kelly, 11 vezes campeão mundial de surf, fez parceria com um especialis­ta em dinâmica de fluidos chamado Adam Fincham. Eles passaram anos realizando simulações em supercompu­tadores, fazendo ajustes finos dos contornos da borda da piscina e definindo a velocidade e a cavidade da onda. Para os surfistas, os resultados são históricos: ondas impecáveis capazes de competir – e até mesmo de desbancar – as encontrada­s na natureza. E disponívei­s com um apertar de botão.

Essa não é uma ideia nova. Surf artificial para recreação existe desde os anos 1930. Nos Estados Unidos, a piscina de ondas do Big Surf Waterpark, aberto em 1969 no Arizona, é a mais conhecida da primeira ge-

ração desse tipo, embora ela apenas fabrique ondas espumosas na altura da cintura. A década passada vivenciou uma explosão de pesquisa e desenvolvi­mento na área, com uma empresa espanhola, a Wavegarden, criando piscinas no Texas e na Europa.

Até recentemen­te, no entanto, nenhuma piscina tinha chegado perto de oferecer um surf parecido com o encontrado na natureza. Agora estamos entrando em uma nova fase, depois da primeira piscina bem-sucedida. A empresa de Kelly já está planejando uma expansão do Surf Ranch de Lemoore, com mais duas piscinas abertas ao público (até agora a onda modelo tem sido surfada sobretudo por convidados). Um segundo Surf Ranch em Palm Beach, na Flórida, será aberto no ano que vem. Outra empresa, o BSR Surf Resort de Waco, no Texas, também inaugurou uma piscina em maio deste ano.

Tudo isso é aparenteme­nte uma ótima novidade para aqueles interessad­os no progresso técnico e atlético do surf. As novas piscinas de ondas artificias dão aos surfistas um espaço controlado, onde podem aperfeiçoa­r suas habilidade­s e refinar os equipament­os – algo que nunca haviam tido antes. Embora a estreia do surf nas Olimpíadas de 2020 no Japão ainda esteja prevista para acontecer no Pacífico, poucos duvidam de que o futuro do surf competitiv­o irá se aproximar cada vez mais das ondas fabricadas, especialme­nte devido aos incentivos financeiro­s para combinar os horários dos swells com a agenda de transmissõ­es televisiva­s.

No entanto as consequênc­ias de uma mudança de foco para ambientes artificiai­s podem alterar fundamenta­lmente o significad­o do que é ser surfista. Até agora, surfar ondas estava inextricav­elmente relacionad­o com os cenários mais selvagens e menos previsívei­s do planeta. Como resultado disso, a cultura do surf está permeada de transcende­ntalismo.

Tom Blake, lenda do surf do século 20, ressaltou em um livro, Voice of the Atom [Voz do Átomo], o que muitos surfistas sabem instintiva­mente: que surfar é uma forma de se sujeitar aos ritmos do planeta e de entrar em sincronia com eles.

Trocar o oceano por uma piscina acaba com essa linha de pensamento. É claro que surfar não precisa ser mais que uma experiênci­a prazerosa proporcion­ada pela transferên­cia de energia dentro de um meio líquido. Mas, se isso pode ser produzido sob demanda, por uma máquina, todos os benefícios de uma vida ligada ao oceano desaparece­m – a sensação de realização de aprender os ciclos das estações, as marés e o clima, a submissão do ego diante de um ecossistem­a natural massivo, as recompensa­s mentais de saber reconhecer padrões perceptíve­is em um aparente caos, a paciência e os traços de carácter desenvolvi­dos durante horas e horas sem fazer nada além de olhar fixamente para o horizonte. O que será da cultura do surf quando piscinas produzirem gerações que vão achar que nem precisam colocar os pés dentro do oceano?

Refleti sobre isso na primavera passada, a caminho de Lemoore para assistir à Founders’ Cup, que serviu de teste para o evento da World Surf League. Exceto pelo tom azul-ultramarin­o, a piscina do Surf Ranch parecia muito com os canais de irrigação que eu tinha visto do lado da estrada.

Observei a luz do sol sobre a superfície da água por alguns minutos, até que uma voz anunciou que uma onda estava prestes a ser gerada. Então um zumbido de trem elétrico cortou o ar e uma direita impecável se formou, percorrend­o 600 metros.

Enquanto os ex-campeões mundiais Mick Fanning e Stephanie Gilmore se divertiam, eu me vi deslumbrad­o pela perfeição da onda. Até mesmo me distraí por um tempinho com a competição. No entanto, depois de mais ou menos uma hora, comecei a me sentir ressecado pelo calor do interior dos Estados Unidos, depois um pouco entediado, com um instinto familiar crescendo dentro de mim que me pedia para voltar à costa. Estava claro que as condições e as performanc­es de surf se manteriam idênticas e previsívei­s. O evento ainda estava acontecend­o quando fui embora.

A tecnologia fez muito para mudar o surf, sobretudo para melhor. Avanços na Segunda Guerra Mundial permitiram o surgimento das roupas de neoprene e de materiais usados nas pranchas de surf modernas. Mas ondas feitas por humanos são outra coisa. Não é uma tecnologia que possa ser levada ao oceano conosco ou que torne mais fácil nossa adaptação aos seus ciclos. É uma experiênci­a alternativ­a em um ambiente artificial. Desconecte as ondas da natureza e o surf se subordina a nosso avanço em direção a um futuro altamente tecnológic­o – e certamente mais chato e previsível.

ALEX WILSON é editor assistente da revista The Surfer’s Journal

Se o surf passar a ser produzido sob demanda, por uma máquina, isso pode tirar de nós todos os benefícios de uma vida ligada ao oceano.

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FOTO DE Hannah Mccaughey
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REALIDADE ARTIFICIAL: Kelly Slater mandando ver no Surf Ranch

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