A verdade está lá fora – na água
ONDAS ARTIFICIAIS AGORA PROPORCIONAM UM SURF TÃO BOM QUANTO AS DE VERDADE. MAS, SE TIRAMOS O SURF DA NATUREZA, CONTINUA SENDO SURF?
A IDEIA DE QUE a humanidade avança em direção a um futuro ultratecnológico – no qual homens, máquinas e natureza se fundiriam de forma nunca antes vista – está em progresso. Na área da inteligência artificial, especialistas acreditam que esse tal “futuro high tech” chegará ainda neste século. Em alguns esportes, já chegou.
Prova disso é a onda artificial criada no coração do desértico Vale Central da Califórnia, nos EUA. Mais exatamente a cerca de 160 km do Oceano Pacífico, na cidade agrícola de Lemoore. Desenvolvida pela Wave Company, empresa do mito Kelly Slater, o Surf Ranch abriga uma piscina de quase 700 metros de comprimento que produz uma onda bidimensional de alta performance. Em setembro deste ano, o local sediou uma competição da World Surf League, a liga mundial do surf profissional, vencida pelo brasileiro Gabriel Medina.
A onda em si é gerada por um hidrofólio (uma espécie de pá) submerso, puxado ao longo da piscina por uma esteira rolante que parece um trem. Para construí-la, Kelly, 11 vezes campeão mundial de surf, fez parceria com um especialista em dinâmica de fluidos chamado Adam Fincham. Eles passaram anos realizando simulações em supercomputadores, fazendo ajustes finos dos contornos da borda da piscina e definindo a velocidade e a cavidade da onda. Para os surfistas, os resultados são históricos: ondas impecáveis capazes de competir – e até mesmo de desbancar – as encontradas na natureza. E disponíveis com um apertar de botão.
Essa não é uma ideia nova. Surf artificial para recreação existe desde os anos 1930. Nos Estados Unidos, a piscina de ondas do Big Surf Waterpark, aberto em 1969 no Arizona, é a mais conhecida da primeira ge-
ração desse tipo, embora ela apenas fabrique ondas espumosas na altura da cintura. A década passada vivenciou uma explosão de pesquisa e desenvolvimento na área, com uma empresa espanhola, a Wavegarden, criando piscinas no Texas e na Europa.
Até recentemente, no entanto, nenhuma piscina tinha chegado perto de oferecer um surf parecido com o encontrado na natureza. Agora estamos entrando em uma nova fase, depois da primeira piscina bem-sucedida. A empresa de Kelly já está planejando uma expansão do Surf Ranch de Lemoore, com mais duas piscinas abertas ao público (até agora a onda modelo tem sido surfada sobretudo por convidados). Um segundo Surf Ranch em Palm Beach, na Flórida, será aberto no ano que vem. Outra empresa, o BSR Surf Resort de Waco, no Texas, também inaugurou uma piscina em maio deste ano.
Tudo isso é aparentemente uma ótima novidade para aqueles interessados no progresso técnico e atlético do surf. As novas piscinas de ondas artificias dão aos surfistas um espaço controlado, onde podem aperfeiçoar suas habilidades e refinar os equipamentos – algo que nunca haviam tido antes. Embora a estreia do surf nas Olimpíadas de 2020 no Japão ainda esteja prevista para acontecer no Pacífico, poucos duvidam de que o futuro do surf competitivo irá se aproximar cada vez mais das ondas fabricadas, especialmente devido aos incentivos financeiros para combinar os horários dos swells com a agenda de transmissões televisivas.
No entanto as consequências de uma mudança de foco para ambientes artificiais podem alterar fundamentalmente o significado do que é ser surfista. Até agora, surfar ondas estava inextricavelmente relacionado com os cenários mais selvagens e menos previsíveis do planeta. Como resultado disso, a cultura do surf está permeada de transcendentalismo.
Tom Blake, lenda do surf do século 20, ressaltou em um livro, Voice of the Atom [Voz do Átomo], o que muitos surfistas sabem instintivamente: que surfar é uma forma de se sujeitar aos ritmos do planeta e de entrar em sincronia com eles.
Trocar o oceano por uma piscina acaba com essa linha de pensamento. É claro que surfar não precisa ser mais que uma experiência prazerosa proporcionada pela transferência de energia dentro de um meio líquido. Mas, se isso pode ser produzido sob demanda, por uma máquina, todos os benefícios de uma vida ligada ao oceano desaparecem – a sensação de realização de aprender os ciclos das estações, as marés e o clima, a submissão do ego diante de um ecossistema natural massivo, as recompensas mentais de saber reconhecer padrões perceptíveis em um aparente caos, a paciência e os traços de carácter desenvolvidos durante horas e horas sem fazer nada além de olhar fixamente para o horizonte. O que será da cultura do surf quando piscinas produzirem gerações que vão achar que nem precisam colocar os pés dentro do oceano?
Refleti sobre isso na primavera passada, a caminho de Lemoore para assistir à Founders’ Cup, que serviu de teste para o evento da World Surf League. Exceto pelo tom azul-ultramarino, a piscina do Surf Ranch parecia muito com os canais de irrigação que eu tinha visto do lado da estrada.
Observei a luz do sol sobre a superfície da água por alguns minutos, até que uma voz anunciou que uma onda estava prestes a ser gerada. Então um zumbido de trem elétrico cortou o ar e uma direita impecável se formou, percorrendo 600 metros.
Enquanto os ex-campeões mundiais Mick Fanning e Stephanie Gilmore se divertiam, eu me vi deslumbrado pela perfeição da onda. Até mesmo me distraí por um tempinho com a competição. No entanto, depois de mais ou menos uma hora, comecei a me sentir ressecado pelo calor do interior dos Estados Unidos, depois um pouco entediado, com um instinto familiar crescendo dentro de mim que me pedia para voltar à costa. Estava claro que as condições e as performances de surf se manteriam idênticas e previsíveis. O evento ainda estava acontecendo quando fui embora.
A tecnologia fez muito para mudar o surf, sobretudo para melhor. Avanços na Segunda Guerra Mundial permitiram o surgimento das roupas de neoprene e de materiais usados nas pranchas de surf modernas. Mas ondas feitas por humanos são outra coisa. Não é uma tecnologia que possa ser levada ao oceano conosco ou que torne mais fácil nossa adaptação aos seus ciclos. É uma experiência alternativa em um ambiente artificial. Desconecte as ondas da natureza e o surf se subordina a nosso avanço em direção a um futuro altamente tecnológico – e certamente mais chato e previsível.
ALEX WILSON é editor assistente da revista The Surfer’s Journal
Se o surf passar a ser produzido sob demanda, por uma máquina, isso pode tirar de nós todos os benefícios de uma vida ligada ao oceano.