Go Outside

No rastro da liberdade

OS VELEJADORE­S FELIPE LUDOVICE E NICOLA MANIGLIA RESGATAM A ESSÊNCIA DA AVENTURA EM EXPEDIÇÕES MINIMALIST­AS PELA COSTA BRASILEIRA

- POR BRUNO ROMANO

NA IMENSIDÃO do Atlântico, o pequeno Andorinha flutua com leveza acompanhan­do o ritmo das águas. Inflada de vento, sua vela embala o minúsculo catamarã de apenas quatro metros. Durante dez dias, essa é a casa itinerante de dois ousados velejadore­s que, sem motor nem cabine, navegam por águas abertas. Na manhã do sexto nascer do sol, uma cena inesquecív­el marca para sempre a jornada: a vista do Morro do Pico. Ponto mais alto de Fernando de Noronha (PE), o monte é o sinal definitivo de que a expedição estava pronta para entrar para a história – com um final feliz.

Extremamen­te expostos e conectados com o ambiente salgado, os velejadore­s Felipe Ludovice e Nicola Maniglia completara­m a travessia “Noronha 13 Pés” com a menor embarcação de todos os tempos. Ao sair de praia Bela, na Paraíba, alcançar Noronha e retornar via Maxarangua­pe, no Rio Grande do Norte, eles percorrera­m 600 milhas náuticas (cerca de 1.000 km) em 220 horas de alto-mar. A trajetória realizada no início deste ano a bordo do Andorinha – que vai virar agora livro e documentár­io – cravou um novo recorde.

As imagens de Felipe, 31, fotógrafo e documentar­ista paulista, captam a dimensão do desafio. Apaixonado por mergulho e registros da natureza, ele se lançou no universo da vela inspirado pelo seu irmão Fred. A relação dos dois se estreitou com a família de Nicola na cidade de Franca, interior de São Paulo, ironicamen­te bem longe do mar. Nicola, 32, filho de pai paulista e mãe mineira, nasceu na ilha de Tortola, no Caribe. Seus primeiros dois anos foram vividos em um veleiro. Na época, os pais estavam completand­o uma jornada de seis anos em uma embarcação de 29 pés.

“Passei minha infância ouvindo histórias do mar”, diz Nicola, que acabou sendo criado logo depois em um sítio. Mas o oceano sempre seguiu instigando o garoto.

Ele não demorou a dar seus próprios pulos, como uma viagem de veleiro de seis meses entre Paraty (RJ) e Natal (RN) no início desta década, feita em grande parte solo. Em outro projeto, em 2015, uma trupe formada por seu irmão, junto de Felipe e Fred, navegou pelas águas do Caribe. Foi refazendo o mesmo trajeto dos anos em que ainda se encontrava na barriga de sua mãe, entre Fort Lauderdale (EUA) e Tortola, que “nasceu” a expedição Noronha 13 Pés.

Somente durante a preparação da viagem, Felipe e Nicola se deram conta de que a travessia tinha ingredient­es inéditos: o tamanho do catamarã, aliado ao estilo autossufic­iente, sem nenhum apoio externo. “Era o tempero que faltava”, diz Felipe. Da paixão pela vela e pelo mar, fontes de inspiração da viagem, à execução de um projeto audacioso, original e com pegada minimalist­a, o “voo” do Andorinha é um bem-vindo resgate da essência da aventura. A seguir, seus idealizado­res dividem com a Go Outside os grandes aprendizad­os da vivência.

LIÇÃO #1: MENOS É MAIS

Qual é a menor estrutura possível que atende às necessidad­es que preciso? Baseada nos princípios de uma vertente clássica da vela, a pergunta foi o ponto de partida para tirar o projeto do papel. “Menos custos e menos problemas para resolver”, resume Nicola. Felipe concorda: “Ir com o mínimo necessário é tão bom, e você logo percebe que não precisa de tanto. E isso abre espaço para se contagiar melhor com todo o entorno”.

LIÇÃO #2: ADAPTAR É PRECISO

A previsão de três dias para a perna de ida rumo a Noronha dobrou graças às condições adversas do mar e dos ventos. Problemas com os cabos de sustentaçã­o do mastro exigiram reflexo e resposta imediata. Uma tempestade tropical atingiu a dupla perto do retorno. E uma mala inteira de equipament­os pessoais de Nicola, incluindo um rádio VHF, acabou indo para o mar, além de outros perrengues menores. “Meu maior medo não era ficar à deriva ou sofrer algum tipo de lesão, mas o de não ter pensado em algo que poderia dar errado”, conta Nicola.

O estado de alerta constante, como descreve Felipe, também exige muita energia. É preciso aprender a conviver com isso. “Você tem que achar o equilíbrio entre estar disponível o tempo todo e conseguir relaxar, senão surta”, diz o fotógrafo. Os velejadore­s concordam que o único caminho possível é parar, respirar fundo e resolver um problema de cada vez. “Desconecta­do de outros estímulos fica mais fácil estar realmente presente, e isso faz toda a diferença”, conclui Felipe.

LIÇÃO #3: VOCÊ NUNCA ESTÁ SOZINHO

A relação de confiança em uma empreitada desse tipo atinge um nível extremo. Para dar conta de colocar o Andorinha à prova na sua missão mais desafiador­a, Nicola e Felipe passaram muito tempo velejando juntos em um processo progressiv­o. Mais do que isso, foi preciso aliar os objetivos de cada um. Certo dia, para garantir mais imagens, por exemplo, Nicola se lançou ao mar enquanto Felipe manobrava o catamarã, trocando os papéis de especialis­tas: “Se ele falhasse, eu não poderia ajudar”.

LIÇÃO #4: CURTA O CAMINHO

A exaustão de quem vive dias exposto ao sol, aos ventos e à água salgada contrasta com outro sentimento de Nicola: “São momentos de êxtase, um prazer intenso de experiment­ar as forças da natureza no seu grau máximo”. Durante a Noronha 13 Pés, a dupla pôde velejar lado a lado com golfinhos, dourados e até o emblemátic­o agulhão-bandeira. “Em aventuras extremas, o grande prazer está na travessia, em cada segundo vivido. A chegada traz realização, mas também deixa um vazio: e agora?”, reflete Nicola.

LIÇÃO #5: NÃO TERMINA QUANDO ACABA

“Chega um momento em que você se integra totalmente e, ao mesmo tempo que quer chegar, poderia ficar ali por mais vários dias”, diz Felipe. De volta à rotina em uma grande cidade (no seu caso, São Paulo), ele ressalta a importânci­a de vivências como essa. “De tempos em tempos precisamos fazer algo assim, senão entramos na ‘máquina’ e viramos apenas uma peça da engrenagem.”

Para Nicola, a imersão lhe abriu horizontes. “Fiquei com a sensação de que nada é impossível”, fala, depois de valorizar fatores-chave como planejamen­to, organizaçã­o e parceria adequada. Quando fecha os olhos hoje, Felipe se lembra da imensidão do mar e faz um paralelo com a existência: assim como qualquer um de nós em algum canto da Terra, o Andorinha deslizando sobre o Atlântico é apenas uma “casquinha” flutuando pelo mundo.

“Em aventuras extremas, o grande prazer está na travessia, em cada segundo vivido. A chegada traz realização, mas também deixa um vazio: e agora?”, reflete Nicola.

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 ??  ?? DESTINO FLUTUANTE: O pequeno catamarã Andorinha desliza pelo Atlântico; abaixo, Felipe e Nicola com seus trajes usados durante as noites da expedição
DESTINO FLUTUANTE: O pequeno catamarã Andorinha desliza pelo Atlântico; abaixo, Felipe e Nicola com seus trajes usados durante as noites da expedição
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