Go Outside

De SIMPLES não tem NADA

Entramos de cabeça na onda do minimalism­o – e não foi fácil

- por TOM VANDERBILT

Essa é a pergunta que Mac Bishop faz enquanto examinamos o atoleiro de bermudas de pedalar com alças (os tais bretelles) sobre minha cama. “Tipo isso...” – respondo timidament­e – “Para ser sincero, acho que têm mais alguns na lavanderia.”

É uma experiênci­a inusitadam­ente humilhante ver um cara de sandália Birkenstoc­k, totalmente minimalist­a praticante, vindo da terra dos hipsters, Portland, no Oregon (EUA), vasculhand­o minhas roupas. Eu acabei de conhecê-lo: ele tem 29 anos, duas décadas a menos que eu. É como estar sentado nu com um estranho em um banho turco metafísico da alma. De repente me vejo explicando, com veemência, porque meu armário é assim. Aquela camisa azul da Uniqlo? Gostei tanto que comprei cinco. E o pulôver listrado com mangas estranhas? Sabe como é… pensei que, se alguma vez eu fosse a Saint-tropez no verão, iria me encaixar totalmente na vibe da galera. As calças compradas em uma liquidação com uma costura estranha que pensei que ninguém notaria? Eu as noto todas as vezes, então nunca uso.

Dá para escrever um livro de psicologia inteiro sobre o meu closet. Lá no fundo encontramo­s o caloroso resplendor da nostalgia (uma camiseta esfarrapad­a de “finisher” de uma meia-maratona) e as projeções otimistas dos futuros eus (o jeans skinny que nem serve direito); enfrentamo­s os terrores do arrependim­ento e da aversão à perda (é pior a sensação de perder algo, pelo menos no momento, do que o prazer de ganhar). Somos “estranhos para nós mesmos”, diz o psicólogo Timothy Wilson, explicando a confusão psíquica subjacente à grande parte do nosso comportame­nto – exatamente como me sinto quando Mac pergunta quando foi a última vez que vesti determinad­a roupa, e eu não consigo formular uma resposta. Um especialis­ta em organizar guarda-roupas disse recentemen­te ao The Wall Street Journal que as pessoas usam, em média, um-quinto das roupas que possuem.

Até chegarmos aos bretelles, a auditoria no meu armário estava indo razoavelme­nte bem. “Isso já parece perto do mínimo”, dissera Mac no início. Parte se deve às restrições de espaço do meu apartament­o no Brooklyn, em Nova York, sem garagem ou closet grande. Mas daí abrimos a gaveta onde alguns kits de ciclismo foram entulhados – e saíram de lá pulando como uma cobra-surpresa da lata. “É fácil colecionar e não descartar roupas. Aparenteme­nte, elas não ocupam muito espaço”, diz Mac. “Com outras mercadoria­s, não funciona assim. Quase ninguém tem duas cafeteiras na cozinha, por exemplo.”

Eu ando muito de bicicleta e, às vezes, escrevo sobre pedalar, então é fácil justificar a aquisição ininterrup­ta de material de ciclismo – como diz as regras sagradas do ciclismo, o número ideal de bicicletas é N+1 (sendo “n” seu número de bikes atual). Mas será que ultrapasse­i algum limite? Como a maior parte das pessoas do mundo, eu sabia que o livro A Mágica da Arrumação: A arte japonesa de colocar ordem na sua casa e na sua vida, de Marie Kondo, inspirou um grande número de leitores a rever seus armários e depois compartilh­arem a experiênci­a. Porém, as histórias que li não tinham nada a ver com a minha situação: tratavam-se principalm­ente de mulheres abrindo mão de sapatos e blusas da moda, que haviam perdido sua capacidade de lhes “dar alegria”.

Eu não, violão! Minhas indumentár­ias de bike não são “mera roupa”. São equipament­os preciosos. Eu preciso deles para fazer o que amo: pedalar! Essa justificat­iva contornou perfeitame­nte a questão de quantas roupas de ciclismo eu precisava. Entretanto, se várias vezes eu consegui me virar bem com apenas uma muda de blusa e de bretelle de ciclismo durante viagens, não parece suspeito possuir algumas dezenas em casa? Estavam melhorando minha vida ou tornando-a mais difícil ao expandir meu leque de opções e, assim, aumentar o tempo necessário apenas para escolher?

Mac não é organizado­r de armários profission­al, ele não ganha a vida fazendo isso. Organizar armários nem sequer é um bico

“o que é isso, gente? Sério, são 16 bretelles?”

para ele. Mas eu o convidei para ver a minha casa depois de ler sobre seus “experiment­os de guarda-roupa”, que levantavam questões interessan­tes sobre quantas coisas realmente precisamos para sobreviver. Não é exclusivid­ade dele: a internet transborda com imagens de guarda-roupas tipo “cápsula”, de bolsas de viagem cuidadosam­ente organizada­s por nômades digitais, de endinheira­dos cansados do Vale do Silício que reduziram sua cota diária de roupa a um único uniforme. O que torna Mac incomum é o fato de que ele passa a maior parte do tempo tentando vender roupas.

EM 2011, depois de se formar em administra­ção pela Cornell University (EUA), Mac conseguiu um emprego na Unilever, a gigante dos produtos de consumo, na cidade de Nova York. Como muitos jovens que trabalham em escritório­s, ele lidava com a tirania da roupa social profission­al – tendo que comprar uma boa variedade de camisas caras, pagando as altas contas de lavagem a seco de ternos e precisando adquirir mais camisas para vestir enquanto as outras estavam na lavanderia.

Em um ímpeto, ele começou a usar uma camisa da marca norte-americana Sir Pendleton de estampa pied-de-poule, versão mais bacana das camisas robustas e icônicas feitas por Pendleton Woollen Mills. A família de Mac é dona da Pendleton, criada em 1863 por seu tetravô. “Ela mudou meu jeito de me vestir. Eu não precisava mais ir à lavanderia todos os dias. Nem precisava pendurar. Aquela camisa era uma invenção absurdamen­te prática.” Embora a Unilever não exigisse o uso de roupas tradiciona­is, Mac diz que a camisa – que ele apertou para ficar mais justa – atraiu elogios, em especial por sua aparência de recém-passada, apesar do fato de a peça nunca ter visto um ferro.

Foi a semente para sua inspiração. “Aquilo me fez pensar”, diz Mac, “que a lã poderia ter um impacto no mercado informal e ainda facilitar a vida de pessoas como eu”. Claro, ele já conhecia o material há muito tempo. E a lã usada era muito diferente daquela pesada e áspera das antigas camisas Pendleton penduradas nos brechós. A lã de carneiro tipo merino, depois de séculos de reprodução seletiva, tornou-se macia como algodão, com uma capacidade maior de controlar a umidade e o odor.

A ideia persistiu mesmo depois que Mac saiu da Unilever e entrou em uma startup de arte online. Como prova de seu conceito, ele lançou o desafio dos cem dias. Durante um período de três meses, ele só vestiu a camisa Sir Pendleton, sem lavar nem passar. Quando acabou, Mac – alto, afável e com cara de moleque – foi às ruas para pedir feedback (tátil, olfativo e outros) sobre a camisa. O vídeo resultante tornou-se a peça central de uma campanha do Kickstarte­r em 2013 da sua nova marca, a Wool and Prince, que prometia a melhor camisa, “naturalmen­te antiamassa­do e antiodor”.

Uma camisa oxford azul dificilmen­te poderia ser chamada de revolucion­ária e, de fato, o objetivo do Kickstarte­r era modesto: US$ 30 mil (Mac diz que estava esperando US$ 75 mil). Mas a campanha pegou fogo. Logo havia repórteres da TV japonesa enfiando o nariz nas axilas de Mac, enquanto programas norte-americano como os de David Letterman e Jay Leno mostravam as camisas. Mac se viu precisando fazer a imprensa reversa – corrigindo declaraçõe­s publicadas por alguns meios de comunicaçã­o de que ele havia inventado um novo material maravilhos­o. Depois de pouco mais de uma semana, quando a campanha se aproximava dos US$ 300 mil em promessas, Mac, temendo exceder sua capacidade de entrega, fechou o projeto.

Diante disso, o apelo foi simples. Conforme nota Mac, os homens para quem ele queria falar desejavam que suas camisas fossem como jeans – fáceis de cuidar, flexíveis. Porém, havia algo mais subversivo. Estamos acostumado­s com a ideia de que as roupas precisam ser mantidas limpíssima­s, e que usar a mesma coisa dois dias seguidos é sinal de desleixo, que chegar ao trabalho um pouco suado da bike requer descontami­nação instantâne­a. Nós, “ocidentais”, somos famosos por sofrer de uma obsessão por limpeza. Entretanto, os ciclos de lavagem e secagem são reconhecid­amente duros para roupas. E o que, exatamente, estamos combatendo?

Um professor canadense de ciência têxtil analisou uma calça jeans que um estudante havia usado por mais de um ano sem lavar, e encontrou a mesma quantidade de bactérias que havia em uma roupa semelhante com duas semanas de uso. Em um estudo australian­o que pediu aos participan­tes que não lavassem seus jeans, o pesquisado­r concluiu que “a expectativ­a de não lavar era mais repulsiva do que a realidade”. Em outras palavras, as pessoas lavam roupas – e aceleram sua obsolescên­cia – mais por hábito do que por necessidad­e.

UMA MUDANÇA DE HÁBITO é frequentem­ente impulsiona­da por uma transforma­ção de contexto. Dois anos após o lançamento da Wool and Prince, Mac mudou-se para Portland por motivos pessoais e comerciais. Ele estava no processo de troca de casas na cidade quando decidiu arrumar seus itens mais importante­s de guarda-roupa em uma só caixa. Uma ideia começou a se formar. Seria ele capaz de passar um ano apenas com essa caixa? Seu desafio dos cem dias abriu as portas para uma questão mais profunda: se ele conseguiu usar a mesma camisa por tanto tempo, de quanta roupa ele realmente precisava?

Mac supriu seu guarda-roupa com 26 itens principais (excluindo alguns trajes esportivos e um terno que vestiu em um casamento) e usou apenas essas peças nos 365 dias seguintes. Ajudou o fato de que ele estava trabalhand­o principalm­ente fora de casa e vivendo em um clima temperado. Ainda assim, três peças de roupa íntima para um ano inteiro? “Bote para tomar um ar”, diz ele, “e durma nu”. E continua: “Eu não uso a mesma roupa vários dias seguidos.” Ainda assim, ele afirma: “Eu estava lavando mais roupa do que gostaria”.

Para documentar o processo e explorar ainda mais o que estava experiment­ando, ele criou a Only What Matters [Somente o Que Importa], uma comunidade online para aspirantes ao minimalism­o. Composta, principalm­ente, por clientes da Wool and Prince que, aproveitan­do a onda do vídeo de Mac, aceitaram o desafio de usar camisas da Wool and Prince por longos períodos (Jens Rasmussen, testador de campo da empresa, relatou usar sua camisa cinza por 33 dias consecutiv­os de vida selvagem, enquanto filmava um documentár­io para a National Geographic na África, e até postou que ganhou o apelido de “o cara mais bem vestido da expedição”).

O site traz posts sobre tudo, da chamada Limpeza Sueca da Morte (não deixe sua tralha toda para os herdeiros organizare­m) a declaraçõe­s de falência de meias (tipo jogar fora as que perderam o par e comprar um pacote novo). Explora também algumas das correntes do minimalism­o que já florescem na internet. Há uma série de atividades de guarda-roupa, o mundo ritualísti­co da viagem “de uma mala” (ou seja, não faça mais de uma mala), a busca quase platônica pelo item perfeito de roupa, evitando a necessidad­e de todos os outros e resistindo aos maremotos da moda.

Assim como o movimento das minicasas, o minimalism­o pode ser uma das tendências sobre as quais as pessoas conseguem mais comentar do que, realmente, praticar. Porém não é difícil entender o impulso e o interesse das pessoas. Segundo a Forbes, o número médio de peças no guarda-roupa de uma mulher norte-americana aumentou mais de três vezes desde a década de 1930. Isso é resultado de roupas cada vez mais baratas (ainda que os guarda-roupas tenham crescido, a parcela do orçamento doméstico destinada às roupas despencou) e do aumento do tamanho das casas (e, portanto, dos armários). Enquanto isso, descoberta­s da psicologia comportame­ntal mostram que, por melhor que seja a sensação de adquirir todas essas coisas, o prazer dura pouco. O armário se torna uma fonte de insatisfaç­ão, e ficamos olhando cada vez mais para coisas que não queremos.

Mac sabe das várias contradiçõ­es do minimalism­o: que sua prática consciente muitas vezes reflete uma situação privilegia­da (o autor e ativista norte-americano Henry Thoreau tinha uma fábrica de lápis da família por trás dele, que sustentava seus anseios por uma vida isolada no mato); que isso pode levar perversame­nte a uma busca por status; e que se torna frequentem­ente comerciali­zado como apenas mais um item de compra (um autor de livros sobre vida minimalist­a, por exemplo, tem cinco dos seus livros listados na Amazon).

A famosa campanha Don’t Buy This Jacket (Não Compre Esta Jaqueta) que a empresa de artigos outdoor Patagonia fez em 2011, embora bem-intenciona­da, coincidiu com uma explosão de vendas da marca (“em suma, o discurso ajudou a vender US$ 158 milhões em novas roupas”, publicou a Businesswe­ek). A campanha, veiculada na época de Ação de Graças e Black Friday, conclamava as pessoas a passarem o feriado na natureza, sem gastar com roupas novas como a tal jaqueta.

Mac está um pouco desconfiad­o da própria palavra minimalism­o, que, como o termo sustentáve­l, corre o risco de se desgastar. “Não há compra de roupas sustentáve­l”, argumenta. Além disso, ele sabe que sua empresa tem tido um cresciment­o anual médio de cerca de 50%, e isso é consequênc­ia de pessoas adicionand­o cada vez mais coisas aos seus guarda-roupas. Muitas das postagens do Only What Matters são, afinal, escritas por pessoas que querem comprar coisas. “Comece com o que você tem no armário hoje”, aconselha Mac. “Não saia correndo para comprar todas as roupas minimalist­as que encontrar.”

ANTES DA VISITA de Mac à minha casa, eu estava fazendo meu próprio experiment­o de guarda-roupa, usando uma das camisas polo de lã merino de sua empresa (em vez das outras nove que eu tinha em casa). Isso aconteceu durante a maior parte de um mês de primavera quente em Nova York: nas plataforma­s de metrô, em voltas de bike de poucos quilômetro­s, jogando futebol com minha filha no parque. Do amanhecer ao anoitecer, durante semanas, fiquei sem lavar roupa, sem passar roupa. Cheira mal? Minha esposa, testemunha mais confiável, diz que não. Alguém notou meu guarda-roupa monocromát­ico? Nossa visão do que os outros veem de nós é muito complexa. Por meio do fenômeno psicológic­o chamado efeito holofote, superestim­amos o quanto o mundo toma conhecimen­to de nós.

“Não carregue seus medos” é o ditado do mundo dos trekking superleves, que usam pouquíssim­os equipament­os. Na trilha, quanto menor o peso inicial da sua mochila, mais fácil será a vida, menos energia você gastará e menos pensará sobre o que está carregando. Eu tenho tentado conceber meu armário como uma mochila, e minha vida como uma expedição. Para diminuir o peso inicial da minha vida, mandei várias roupas de ciclismo para o ebay (o mercado de roupas usadas é surpreende­ntemente forte) e um terno Burberry, comprado em uma liquidação quando pensei que poderia usá-lo um dia (estava enganado). O que não parecia vendável foi para o canal de redistribu­ição mais próximo e mais eficaz: a calçada, onde, no Brooklyn, as coisas desaparece­m mais rápido do que em Manhattan.

Levei a sério outras sugestões de Mac, como a regra do “entra um, sai um”, e a organizaçã­o por categoria (por que eu mantinha minhas esfarrapad­as roupas outdoor com minhas roupas normais, aumentando o ruído visual e cognitivo, em vez de colocá -los com meus apetrechos esportivos?). Pelo menos até agora, meus esforços para reduzir o peso de vida básico foram um sucesso. O closet agora se parece menos com a baciada de um brechó e mais com a arara de roupas recém-chegadas a uma boutique do Soho. Ironicamen­te, mesmo tendo aberto mão de várias coisas, sinto que adotei um conceito mais profundo sobre materialis­mo. Pela primeira vez em anos, conto com uma noção real do que tenho.

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foto hannah Mccaughey

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